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Allen Contra Farrow

Tudo o que você queria saber sobre pedofilia e Woody Allen não queria contar

Por João Lanari Bo

Allen Contra Farrow

Allen Contra Farrow”, de 2021, minissérie documental em quatro episódios dirigida pela dupla Kirby Dick e Amy Ziering, é mais do que uma voraz investigação sobre os supostos devaneios pedófilos do ator, escritor e diretor de cinema Woody Allen: é um mergulho profundo nesse fenômeno (ou anomalia) psicossocial, a pedofilia caseira e intramuros dos lares familiares, associada à presença autoritária e tirânica de adultos diante de crianças indefesas, com o fim precípuo de obtenção do gozo sexual. As idas e vindas da contenda entre Farrow e Allen é uma ilustração amplificada do que se passa em milhares – ou milhões – de famílias, ricas e/ou pobres, em todo o mundo. Neste caso, o status de “celebridade” dos contendores agregou uma avalanche de reportagens e comentários, expondo as circunstâncias que teriam estimulado a gênese da pulsão sexo-predadória de Allen – e que ele insiste em negar, registre-se.

Um dos méritos da série é investir em minúcias particulares – vídeos íntimos, gravações de conversas telefônicas, detalhes de depoimentos para a justiça – de modo a dissipar a aura midiática em torno dos personagens e trazer para o primeiro plano o drama de Dylan Farrow – a filha (adotiva) que acusa Allen de abuso sexual. A história de Dylan começa em 1992, quase trinta anos atrás, quando ela tinha 7 anos: a dimensão recente que as ressonâncias em torno de casos de assédio e abuso sexual alcançaram nos EUA, sobretudo com o movimento #metoo, permitiram que o trauma voltasse à tona, com força redobrada. Sem dúvida, as “celebridades” têm poder, inclusive financeiro: esse é um dos aspectos em jogo. Uma das ameaças que Woody faz a Mia Farrow não deixa dúvidas – “eu sou uma pessoa poderosa com muitos recursos e posso transmitir uma mensagem muito poderosa da minha parte, seja ou não a verdade, posso fazer com que as pessoas acreditem”.

A minissérie assume sem rodeios posição pró-Farrow. Woody Allen, obviamente, não quis dar entrevista, mas vários comentários seus foram reproduzidos a partir do audiobook em que ele conta sua versão dos fatos. Através do escritório de public relations que o representa, chefiado por uma poderosa de Hollywood, Leslee Dart, todos os esforços foram na direção de “pintar Mia Farrow como uma mulher desprezada que diria qualquer coisa”: essa afirmação é repetida ad nauseum pelo diretor e seus aliados. Em uma entrevista ao prestigiado programa da CBS, “60 minutes”, em 1992, Woody disse: “Tenho 57 anos. Não é ilógico que eu, no auge de uma luta amarga e acirrada pela custódia das crianças, dirija até Connecticut, onde ninguém gosta de mim – estou em uma casa cheia de inimigos, quer dizer, Mia estava tão furiosa comigo, e ela fez todas as crianças ficarem com raiva de mim – (não é ilógico) que eu vá dirigir até lá e de repente, na visita, escolher este momento da minha vida para me tornar um molestador de crianças?”

Depois de assistir “Allen Contra Farrow”, entretanto, resta a impressão de que as possibilidades de Allen ter começado o assédio antes desse dia específico são, hélas, razoavelmente grandes – não teria sido apenas uma “única” vez que assediou Dylan.

Fevereiro de 1992: Mia Farrow descobriu na casa de Allen fotos de sua filha adotiva Soon-Yi Previn nua, tiradas com polaroid. Na sequência, o diretor confessou ter um relacionamento com Soon-Yi, cuja idade era 20 anos. No audiobook, Allen conta que o primeiro beijo com Soon-Yi aconteceu depois de uma sessão íntima de “O Sétimo Selo”, o clássico de Ingmar Bergman, em seu apartamento: existem suspeitas, registre-se, que o caso começou antes, quando Soon-Yi ainda estava na high school. A batalha nos tribunais começou em agosto de 1992, quando os advogados de Woody entraram com ação de custódia contra Mia, acusando-a de ser uma “mãe inadequada”. Recordando esses acontecimentos, o depoimento de Dylan adulta é forte: como também o são suas falas com 7 anos, nos vídeos gravados por Mia logo após o fatídico evento de abuso em 1992 – que Allen e o exército de advogados acusam de terem sidos manipulados pela “mulher desprezada”, Mia Farrow. Aos olhos do espectador desavisado, entre as imagens de Dylan criança e a retórica jurídica, qualquer opção pode ser a pior.

Quem parece estar se afundando nessa tormenta é a persona cinematográfica de Woody Allen: a Amazon suspendeu a distribuição do seu filme de 2019, “Um dia de chuva em Nova York”, e cancelou a produção dos quatro que viriam na sequência. “O Festival do Amor”, o último longa que realizou, de 2020, foi produzido pelo Mediapro, grupo espanhol. A maior parte das atrizes (e atores, em menor número) que lutavam para obter um papel em suas histórias abandonou o barco: Natalie Portman sintetizou o sentimento de muitas colegas, declarando simplesmente “eu acredito em você, Dylan”.

A autocomplacência compulsiva que Allen carimbava nos personagens que encarnava – uma autodepreciação neurótica frequentemente marcada com dissimulação – parece estar dando lugar ao egocentrismo arrogante do Woody Allen da vida real. Se antes era curioso e engraçado acompanhar os losers ingênuos e virtuosos dos seus filmes, agora é constrangedor conferir como se deu sua escolha de embarcar no que ele viu inicialmente como travessura sexual com a filha adotiva de sua parceira de longa data – e pior, sem avaliar como aquela atitude poderia afetar as crianças do entorno, sua família.

Na produção de “Allen Contra Farrow” duas personalidades se destacam: uma é Ronan Farrow, 33 anos, filho biológico de Mia e Woody que se tornou um talentoso e midiático jornalista: foi ele quem detonou o mogul e produtor Harvey Weinstein, o predador-campeão da era #metoo, em artigo publicado no The New Yorker. Ronan foi determinante para Dylan sentir-se reassegurada e vir a público. A outra, menos visível, mas igualmente fundamental, foi Amy Herdy, a produtora que liderou as investigações para a minissérie, infatigável na pesquisa de documentos e provas anteriormente encobertos, bem como filmes caseiros e telefonemas entre Farrow e Allen. Por tudo isso, Woody Allen, instalado confortavelmente no topo da cadeia de produção cinematográfica norte-americana – o que não é pouca coisa, claro – não esperava. Só resta aguardar a segunda temporada.

4 Nota do Crítico 5 1

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