Álbum em Família
A estética Glu-Glu do cinema
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Gramado 2021
Talvez o novo filme de Daniel Belmonte, “Álbum em Família”, seja um dos mais complicados para se traduzir, por causa de sua forma contraditória em lidar com a estética da obra cinematográfica, esta que não fornece elementos ao propósito objetivado do que se quer abordar. Talvez sua estrutura crie a redundância cíclica do momento datado, como se o agora já soasse ultrapassado ao evocar o distanciamento temporal de uma incompatível época ambientada. Sim, talvez seja um filme talvez e toda essa complexidade em explicar é para tentar entender o porquê do amadorismo das escolhas narrativas; da ingenuidade expositiva; da crença utópica de que o que se faz é uma invenção cênica; e do oportunismo temático mascarado de pop metalinguagem criativa, pegando como Cristo e Judas um Nelson Rodrigues praticamente “cancelado” nos dias de hoje, entre rostos do personagem de Marcelo Müller, cenas enviadas de “Tia” Renata Sorrah, picardias com Lázaro Ramos, esquetes teatrais com Tonico Pereira, entre outras. O longa-metragem em questão aqui, que integra a mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado 2021, é acima de tudo uma experiência emaranhada de referências desconstruídas, que se abriga na defesa a fim de esconder a vulnerabilidade da própria ideia da criação.
Seu realizador, que já foi ator da série televisiva “Malhação”, em seu segundo filme, corrobora a ideia do fazer cinema com baixo orçamento, tema-metalinguagem abordada no anterior “B.O.”, de 2019, em que a equipe se torna uma família, se engajando e participando de todas os elementos-etapas “tudo muito bem decupado”, forma esta também que contribui para a realização. Assim, “Álbum em Família” firma-se como um filme de amigos que se juntam em suas casas para “brincar” de fazer cinema (porque segundo Daniel, “todos estavam em casa e deu tempo de experimentar”). Mas que para tudo isso ser possível o público precisa ser compassivo, cúmplice e entender o mote das dificuldades encontradas. Sim, é preciso lembrar que este formato-estética não é novo. Durante a pandemia, vidas foram documentadas pela websérie em processo “Me Cuidem-se!”, de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, que depois virou filme. E que o cineasta Jorge Furtado já usou o artifício de metalinguagem cômica em “Saneamento Básico”. Aqui, essa tentativa de “reinventar a roda”, por mais que ensaiada, pensada e arraigada, soa inocente demais. Filme B demais. Chanchada demais com indícios pastelões, como fazer cocô e pegar sol só de cueca, bem na ideia de “quero ser Seth Rogen e quero fazer humor desconfortável”. Ainda que se use isso para embasar o não usar. Por uma analogia à “estrutura maluco do Set virtual” (em reuniões ensaios por zoom). Para mostrar que a “gente não vai parar nunca”. Para falar da “possibilidade do encontro no mundo do desencontro”. “Esse filme é o que a gente é.”, diz Daniel, já completamente amalgamado em seu papel, e impossível de dissociar realidade, ficção e projeção da construção. “Falar dos arquétipos de família mergulhados na nossa própria família”, complementa.
A mise-en-scène de “Álbum em Família” não poupa esforços para abraçar a nostalgia pop-nerd, por exemplo encenações com Playmobil, e forçar uma espontaneidade inventiva. Mas como já foi dito o propósito real se mistura nesse balaio de gatos, criando o “samba do criolo doido”. De um lado, o Nelson gênio “alicerce” da dramaturgia, o nosso “Shakespeare”. Do outro, o Nelson apoiador da Ditadura. De um lado, um pessimista angustiado e crítico aguçado sobre a tradicional família brasileira. Do outro, um machista e misógino. E no meio, um querer do Daniel em perguntar e responder. “É possível julgar o autor pelo crivo do nosso tempo?” e “Uma crônica de uma época, lidos de maneira crítica a luz da história”. A narrativa segue com incorporações. Trechos de arquivo com entrevistas com Nelson Rodrigues. Partes de intimidade fotográfica de memórias afetivas dos próprios atores, que são os próprios personagens, que vivem o mesmo momento. Um falso documentário de relatos à moda do seriado “The Office”. Alívios cômicos no drama encenado, com um que latente de “Porta de Fundos” (o personagem “bebe água da peça”, por exemplo). A quebra da quarta parede. Experimentos estéticos da câmera. Tudo fabula os arquétipos. Há uma exposição dos condicionamentos enraizados que geralmente guardamos, bem aos moldes de Domingos de Oliveira (e agora seu “herdeiro” Matheus Souza). Cada um ali, em seu processo único, emite uma opinião com cara de Facebook. Como não adaptar Nelson. Como o patriarca ser um um “escroto”. “Nelson tem métrica, tem silêncio, tem rubrica”, diz-se, parecendo uma aula didática de teatro para atores iniciantes.
“Álbum em Família” seria um curta excelente. Ou uma ótima websérie. Mas ao escolher o longa-metragem, a essência fica caseira demais. Amadora demais. E a ideia se perde na própria tentativa de se criticar a reinvenção da roda. Sim, nós alertamos que seria uma análise complexa. E assim entre idas ao terraço e encerramentos com Hamlet, o filme ensaia o ensaio, utilizando-se de toda essa impossibilidade impeditiva de se filmar para cavar o amadorismo como estética dessa falta de recursos. Certa vez, o crítico Pablo Villaça chamou Apichatpong Weerasethakul de o “Ivolanda do Cinema”, por suas pegadinhas. Daniel Belmonte está mais para Sérgio Malandro e seus Glu-Glu ié-ié estéticos.