Agreste
Oração de Cartaxo
Por Vitor Velloso
Homenageada na 24ª Mostra de Tiradentes, Paula Gaitán possui uma trajetória ímpar e de muita personalidade em sua cinematografia. “Agreste” possui a assinatura da cineasta e articula uma proposição distinta para uma questão geográfica, cultural, material, que a cinematografia nacional não havia comportado.
A questão não está em uma necessidade de representação direta e debates em torno do agreste, como pode imaginar parte do público, mas sim de uma compreensão do que é, as crenças que o cercam e as pessoas, sem suas reverberações de “necessidades” e “lutas”. Mas uma presença de fé e uma colocação do acreditar, de uma liberdade, comprometimento, poesia etc. Em verdade, tentar categorizar a obra, é um exercício bastante desonesto, o longa possui frentes de composição que não correspondem uma narrativa de forma explícita ou mesmo cria um desenho dramática particularmente didático. Pelo contrário, existe um sincretismo formal que passa a se relacionar com o material e um local de mitos, ritos, metafísico, da fé propriamente dita.
Um ponto a ser debatido é como “Agreste” segue uma linha mais próxima de “Vida”, compreendendo que a centralização de um eixo cinematográfico carrega consigo possibilidades mais amplas de impulsionar a obra para um lugar de menos exposição e uma construção dialética que se contamina em luz, movimento, imagem, criação. Dentro de todo um barato onde a obra passa a se projetar, nas estranhas, nas vísceras, há o Brasil e uma fé primitiva, primordial, que faz gênese de nossa própria cultura.
Apesar de uma recorrência mais festiva de como a poesia se coloca diante da própria obra (quando não há projeta) o filme não se mantém alienado dos diversos pontos a serem trabalhados em uma representação em torno de um materialismo brasileiro a partir do “Agreste”. Essa consciência em torno de uma força motora que é mais que um vulcanismo reativo e gerador, mas sim de uma personagem que não apenas representa, como materializa, é o que transforma a interpretação de Marcélia Cartaxo no verdadeiro norte da obra. A misancene (por Glauber Rocha) se coloca diante de sua presença, anseios e ações, Cartaxo faz o quadro e é o centro gravitacional. Mas Gaitán detém as rédeas do filme e consolida uma estética que funciona a partir de um ideal, quase místico, de um Brasil onde o subdesenvolvimento transforma oração em moeda de troca.
Uma economia da fé, onde morais e leis da matéria, sugerem o divino, a deidade, como recurso último para o diálogo dos que não são escutados. É a dialética do sincretismo, como força motriz para um cinema que se organiza em caos e gira, rotação de 24 brasis por segundo.
A maior parte do tempo de exibição de “Agreste” recusa diálogos. Quando há, não pode ser chamado de audível. E essa relação com uma fé que talvez não se compreenda, como um verdadeiro movimento de oração, é o que faz a obra ser destaque, encontrando em Cartaxo e Gaitán, duas forças de brilhantismos únicos para materializarem o imaterial. Suspender o tempo e espaço.
A montagem urge em tentar condensar parte da rotação formal, de um suposto lirismo de carne e osso, e da realidade em si. A menina a cantar, próximo ao fim, com o direcionamento de um sacrifício em quadro, o ato de deixar o próprio centro, ao que soa, a partir de um sincretismo mais vertical (a julgar pela música), faz com que o cinema geográfico se una à gira, conjugando verbos inaudíveis à esperança do que se acredita quase que por obrigação.
“Agreste” não é uma obra convencional nem para os padrões de Gaitán, mas sem dúvida é um traçado importante na carreira da cineasta, contribui massivamente para a construção de uma cinematografia nacional e abre as portas para a compreensão desse país que se representa em povo, fé, canção, dança, dependência e subdesenvolvimento.
Ser uma atriz brasileira é um desafio. E Marcélia conduz as outras Cartaxos em uma autorepresentação e Brasil em comunhão.
“Os cortes estão nos espaços a serem ocupados. É tutano da alma, apocalypse da forma, digressão literária, deturpação sonora em melodia gritante, urge contra o estóico, o sofrimento individual. Nada se desloca, pois tudo se desloca. Aquilo que nos é estranho, nada é. Por falta de explicação se assume encarnado o movimento post-mortem, desespero-esperança-gira em comunhão de ideias no cadáver do natimorto cinema brasileiro. É caos em organização do não-perdão, é consciência da dialética do oprimido, é estético, é rotação. Dilúvio de transe endoantropofágico, consumação do corpo, físico. É o corpo-câmera, que saúda a si mesmo” – Bigode.