Agentes do Caos
No princípio, era o caos
Por João Lanari Bo
Embora tenha sido lançado pelo HBO em setembro de 2020, a minissérie documental “Agentes do Caos” acabou ganhando uma inesperada concretude depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022. Inesperada, e trágica: ao desvendar a macro e a micropolítica dos esforços russos em aumentar o descontentamento, a desconfiança e a polarização na política americana, através de falsos perfis nas redes sociais e do velho e eficiente hackeamento de dados privados, o documentário de Alex Gibney acabou mapeando também as fraturas e animosidades entre o gigante russo e o vizinho ucraniano. O objetivo principal era explicitar vulnerabilidades na sociedade e, por extensão, no sistema político-eleitoral dos EUA – e como os russos evidenciaram essas fraquezas com seus ataques cibernéticos. Ataques cujo objetivo era desacreditar o sistema democrático e levar Trump à Presidência, sem dúvida. Claro, a data de lançamento, às vésperas da tentativa de reeleição por parte de Trump, não foi aleatória: a ideia era funcionar como um alerta, voluntário ou não, aos eleitores que se preparavam para comparecer às urnas. E como entra a Ucrânia nessa disputa, acalorada e polarizada? A Ucrânia foi, para a Rússia, um laboratório das estratégias de desinformação e dispersão política, coordenadas diretamente pelo Kremlin, ou indiretamente por meio de grupos ligados a Vladimir Putin – e que posteriormente foram dirigidas contra os Estados Unidos.
Estratégias, sublinhe-se, que começaram a ser desenvolvidas no plano doméstico, sobretudo a partir de 2012, quando Putin voltou à Presidência em eleições fortemente contestadas. Em 2011, nas eleições parlamentares, já haviam surgido vários indícios de fraude a favor do partido governista, a Rússia Unida. Protestos varreram o país, fazendo com que o pleito presidencial ocorresse sob clima de tensão. Quinze minutos após Putin votar, três ativistas da organização feminista ucraniana FEMEN invadiram o local de votação, e seminuas gritaram “Putin fora!” e “Putin ladrão!”. Na sequência, derrubaram a urna onde Putin votou. O porta-voz Dmitri Peskov comentou o episódio: As meninas são tontinhas. Acham que isso é romântico. Mas falando sério, primeiro, é uma violação da ordem pública. Segundo, pelo que posso entender, ofereceram resistência aos agentes de segurança. A campanha de Putin optou por não denunciar o episódio. Não é preciso ressaltar que protestos pós-eleições ocorreram em escala inédita em um país com tradição autoritária como a Rússia, todos duramente reprimidos.
Romântica ou não, uma transgressão como a das feministas da FEMEN seria impensável hoje, quando censura e repressão tornaram-se definitivamente implacáveis, sobretudo depois da invasão da Ucrânia. As ativistas, aliás, foram presas posteriormente, em diversas ocasiões. “Agentes do Caos”, por seu turno, detalha como as operações de informações russas penetraram nas mídias sociais americanas tal como um filme de Hollywood – afinal, os russos encarnaram durante décadas o outro ameaçador da felicidade e bem-estar do Tio Sam. A Guerra Fria acabou, e a Rússia, malgrado o status de potência nuclear, está longe de competir com os Estados Unidos econômica e tecnologicamente – quem faz esse papel hoje é a China. Mas a alteridade russa e toda a fantasmática associada sobrevive, eventualmente estimulada também pelos dirigentes em Moscou. As evidências de que os russos realmente se esforçaram para gerar o caos na disputa presidencial entre Trump e Hillary Clinton – trolls insistentes explorando fissuras sociais e ódios raciais, hackers roubando e-mails de Clinton e minando o Partido Democrata perante a opinião pública – são reais e persuasivas, assim como a conexão entre personagens patéticos e contundentes com toda essa armação. A minissérie traz um impressionante conjunto de entrevistas e linhas de investigação: FBI, Acadêmicos, CIA, Senado, Departamento de Justiça, Procuradores, a lista é exaustiva. Ao final, entretanto, a sensação é de que o esforço russo certamente teve impacto, mas não decisivo: as contradições, fraturas e polaridades estão, em última análise, nos corações e mentes dos norte-americanos.
Talvez o interesse maior que “Agentes do Caos” possa despertar para o telespectador seja em relação ao lugar que a Ucrânia ocupa nesse duelo de impérios, EUA e Rússia. Os personagens do lado russo, afinal, são os mesmos: o inacreditável Yevgeny Prigozhin, conhecido como o “chef de Putin”, continua firme e forte ao lado do líder. Começou vendendo cachorro-quente, evoluiu para fornecedor de catering predileto de Putin e ampliou seus negócios de forma inimaginável. Entre outros, financiou a famosa Agência de Pesquisas da Internet, conhecida pela sigla IRA, um prédio de 8 ou 9 andares em São Petersburgo dedicado à produção de fake news, trolls e assemelhados: e a temível empresa de segurança Wagner, que emprega mercenários armados até os dentes, para atuar mundo afora em prol dos interesses do Kremlin – ou seja, a famigerada milícia, em escala estatal. Ambos, IRA e Wagner, desempenham tarefas mais do que relevantes na guerra contra a Ucrânia. A última notícia sobre o empresário dá conta de sua alegada peregrinação por presídios russos convocando detentos para a guerra, em troca do cancelamento das penas. Alguns dos “soldados” se queixaram, teriam sido usados como bucha de canhão, e acabaram se entregando às forças ucranianas. Prigozhin teve prisão decretada, à revelia, pelo FBI – ao saber da notícia, reagiu: os americanos são pessoas muito impressionáveis, eles veem o que querem ver.