Adoniran: Meu Nome é João Rubinato
Rir da Desgraça da Condição Humana
Por Jorge Cruz
“Adoniran: Meu Nome é João Rubinato” bebe em duas fontes nos seus primeiros momentos. Há vezes em que utiliza o biografado, resgatando arquivos de áudio, para que o mesmo conte sua história em primeira pessoa. Uma maneira de trato com vida e obra que não deixa espaço para debates acerca da abordagem, tal qual as escolhas da equioe de “Humberto Mauro“. Em outras passagens, fica nítido o objetivo de absolver o protagonista dos motivos de sua morte. Esse “bode na sala” que outro documentário, “Cássia“, sobre a cantora Cássia Eller, deixa pastando até a parte final, o longa-metragem escrito e dirigido por Pedro Soffer Serrano afasta na primeira oportunidade. Tira o foco e a sensação de que o julgamento moral acerca do fato de Adoniran Barbosa ser boêmio supera tudo o que foi produzido pelo artista, cortando de forma seca essa demanda logo na largada.
Serrano, em seu primeiro trabalho, construiu uma obra de ficção que recria o universo pensado pelo compositor no curta-metragem “Dá Licença de Contar” (que pode ser assistido na plataforma Vimeo, canal do próprio realizador, clicando aqui). Essa familiaridade com o tema facilita a materialização do trabalho de pesquisa em um filme sucinto, porém longe da superficialidade. O equilíbrio entre imagens de arquivos e entrevistas recentes comprovam o meritório trabalho de montagem do próprio Pedro, ao lado de Christian Grinstein e Gabriel Peixoto. Há, contudo, uma escolha ainda mais acertada. Ao invés de insistir nas ultrapassadas formulações de um ideário paulistano, “Adoniran: Meu Nome é João Rubinato” explora a territorialidade nos momentos de transição. É quase como se servisse uma questão fundamental, porém específica, àqueles que valorizam essa linha de pensamento. Seja pelo passeio pelas placas nas esquinas, com câmeras posicionadas como se fossem os olhos de um pedestre ou no resgate de imóveis antigos. Um deles, onde se localizava um tradicional restaurante, hoje é, obviamente, uma farmácia – um pequeno trecho que carrega muito da ocupação do espaço público nas metrópoles. O quanto de nossa História não se perde diariamente, esmagada pela força do capital em um soco da mão invisível do mercado?
Na primeira metade do documentário o que chama a atenção é o debate acerca da consciência do artista sobre a maneira como a qual seria visto. Fica a impressão de que Adoniran se valia de um certo mecanismo de defesa contra a exotização de sua imagem. A cooptação do samba em São Paulo se distanciou um pouco da maneira com a qual o Rio de Janeiro adotou Noel Rosa como um compositor do cotidiano. O homem que cantou Vila Isabel não viveu o suficiente para olhar criticamente sobre o fato de serem, os sambistas boêmios, celebridades acidentais. Já o biografado precisou criar essa identidade, formular uma imagem pública. Antes disso, ele emulava a própria malandragem carioca, da mesma maneira que Roberto Carlos fez com a bossa nova e o bolero no início da carreira no final dos anos 1950. Tanto isso contava contra essa persona que o Rei proibiu por décadas a circulação do disco “Louco por Você” (uma ouvida do álbum, no You Tube, revela os motivos).
O equilíbrio já apontado também se vale na análise crítica da personalidade de Adoniran. Um documentário com material suficiente para seguir a rota da exaltação, com cenas da carreira cinematográfica do protagonista e seu importante contribuição nos grandes veículos com “Histórias da Margem”. Um homem que procurava dar voz aos invisibilizados e silenciados de sua comunidade e que se revela um crítico do progresso desenfreado. Contudo, na segunda metade, “Adoniran: Meu Nome é João Rubinato” não se olvida de questões que vão de encontro a efusiva abordagem daqueles que preferem agradar os biografados e a quem ele se vincula. O compositor, produto de seu tempo, não deixa de utilizar expressões e expressividades machistas e racistas. No própria programa de televisão citado, por exemplo, ele se valia da sordidez da técnica do black face. Situações que a condução de Pedro Soffer Serrano projeta em um tom acertadamente respeitoso, sem deixar de ser crítico. Apenas aqueles que conscientemente se valem de uma argumentação tacanha interpretarão essa representação de Adoniran como prova de que ali vivia-se os “bons tempos”. Nessa ótica, se vale do mesmo expediente empregado por Susanna Lira em “Mussum: Um Filme do Cacilds”.
A riqueza de informações em “Adoniran: Meu Nome é João Rubinato” e sua narrativa priorizando a cronologia possibilita a seus realizadores pensarem em uma adaptação ficcional no futuro, colocando o sambista na fila de cine biografados brasileiros. Sua filha é colocada como contraponto de uma figura quase unânime no carinho distribuído pelos entrevistados. Porém, ela mesma processa suas referências e traz testemunhos carregados de sensatez. Quando o documentário se caminha para o final, o resgate de popularidade de Adoniran Barbosa, que teve como auge o lançamento de um disco com Elis Regina, se vale do fato dos últimos anos de vida do biografado serem os mais conhecidos. Mesma sorte não teve a grande escritora Carolina Maria de Jesus, por exemplo, que enfrentou dificuldades até sua morte. Dois grandes expoentes da cultura, retratando manifestações genuínas do povo de São Paulo, que do final dos anos 1950 a meados dos anos 1960 fizeram parte de uma onda de representatividade de nossa arte. Aquela onda passou e, pelo visto, uma outra encontra-se recolhendo novamente para o mar.
Vozes da modernidade, que além de subverter o formalismo linguístico, nos ensinaram a entender ou rir da desgraça da condição humana e que não devem voltar a se calar novamente.