Acima das Nuvens (As Nuvens de Sils Maria)
O vento do vale Engadin
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2014
Em 2014 Olivier Assayas dirigiu “Acima das Nuvens (As Nuvens de Sils Maria)”, colocando, no campo e contracampo, duas fenomenais atrizes: Juliette Binoche e Kristen Stewart. A francesa atrai sobretudo um público adulto, afeito a produções europeias, circulando também em filmes anglófilos (seu inglês é perfeito) e asiáticos – uma world actress, versátil e talentosa. A norte-americana, igualmente talentosa, construiu sua exitosa carreira na caudalosa indústria de seu país, com destaque para a saga “Crepúsculo”, fazendo com que seu rosto seja dos mais conhecidos do planeta, ao lado do parceiro-vampiro Robert Pattinson: foram cinco filmes de alta bilheteria, entre 2008 e 2012. Felizmente, empresta seu talento também ao chamado “cinema independente”, produções de menor orçamento com empenho artístico diferenciado.
É o caso de “Acima das Nuvens (As Nuvens de Sils Maria)”. A intuição esperta de Assayas foi contrapor esses dois mundos num mesmo espaço ficcional – além de dirigir, ele escreveu o roteiro. Binoche interpreta Maria Enders, uma estrela nos seus quarenta anos, que recebe convite para atuar na peça “Maloja Snake”, a mesma que a lançou no estrelato duas décadas antes. Naquela altura, Maria interpretou Sigrid, uma jovem que seduz e possivelmente leva ao suicídio sua chefe de quarenta anos, Helena. Desta vez seu papel seria o da mulher mais velha, Helena, empresária de meia-idade atraída e manipulada pela jovem assistente. A assistente escalada para a peça é Chloë Grace Moretz, outra jovem atriz de sucesso: seu papel no filme, no entanto, é coadjuvante. O que importa para Assayas é a relação entre Maria e a assistente Valentine (encarnada por Stewart) – elas passam boa parte do tempo repassando os diálogos entre as duas personagens, Sigrid e Helena, permeados de insinuações e escaramuças amorosas. Além disso, entabulam trocas intensas sobre fatos do cotidiano e reflexões sobre construção de personagens – e também sobre a indústria do espetáculo audiovisual e suas idiossincrasias.
O ponto cego da narrativa é o autor de “Maloja Snake”, Wilhelm Melchior – onipresente, mencionado mas nunca visto, nem em fotos. No mesmo dia em que seria homenageado em Zurique, Melchior comete suicídio nas montanhas alpinas de Sils-Maria, apreciando o vale Engadin. Maria Enders havia sido encarregada por Melchior de receber o prêmio: no vazio que se segue, ela encontra o diretor teatral que a convida para o remake da peça. Maria, é claro, reluta em aceitar – o tempo passou, sua carreira, apesar de ainda exuberante, pode ter passado do pico. Durante os dias que passam isoladas na casa de Melchior, as duas atrizes – representando diferentes gerações e origens, além de distintos números de box office – alternam e interagem dúvidas e relações de poder, energias e afetos.
A fluidez entre Binoche e Stewart, apoiadas por um texto intenso e denso, é o núcleo desse drama que tem como referência as nuvens sinuosas como serpentes que, ocasionalmente, atravessam o vale. Quando uma delas diz “eu”, nossa leitura é suspensa por um átimo de tempo: são as personagens de “Acima das Nuvens (As Nuvens de Sils Maria)” – ou as personagens da peça? Maria não esconde a insegurança: O que preciso fazer para que você me admire? Apesar das várias trocas acaloradas que ocorrem entre Maria e Valentine, a intimidade entre elas nunca se materializa fisicamente, mesmo nas situações de quase-contato. O filme de Assayas se inscreve na tradição dos jogos de espelhos dramáticos, tão cara ao cinema.
Embora não citado, o mais ilustre visitante de Sils-Maria – minúscula comuna de poucas centenas de habitantes, encravada nos Alpes suíços perto da fronteira com a Itália – foi ninguém outro que Friedrich Nietzsche, o mais popular dos filósofos. Nietzsche passou longas temporadas na região a partir de 1879, para livrar-se das enxaquecas e outros males que o obrigaram a renunciar à sua cátedra na Universidade da Basileia. O ar cristalino, rochedos, lagos serenos, trilhas montanhosas – Nietzsche passava às vezes dez horas caminhando – encantaram o filósofo, que ali concebeu e/ou escreveu alguns de seus livros mais conhecidos, como “A Gaia Ciência”, “Assim Falou Zaratustra” e “O Anticristo”.
A Sils-Maria que Nietzsche conheceu, hélas, está longe do cenário atual, um paraíso para entusiastas do esporte e aventureiros, lugar de inspiração e tranquilidade, vale de natureza intocada, repleto de tesouros culturais, como indica a página da comuna, integralmente dedicada ao turismo. O cineasta Júlio Bressane visitou o local em 2019 e editou na sequência um doc-turismo-cultural, “Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej”, disponível no Youtube. Não é o que Maria e Valentina viram e experimentaram no filme de Assayas, mas vale o clique.