Acaso
Sobre vias e burguesias
Por Ciro Araujo
Durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2021
Para descrever a W3 Sul de Brasília existem algumas (várias) formas. Ela é uma terceira avenida paralela ao eixo que corta o formato de avião da cidade. É também uma área tombada. Ademais, é cenário para aqueles nostálgicos que desejam voltar aos tempos de outrora (leia-se anos 80, uma metrópole revoltada). “Acaso” parte de um pressuposto que a via é capaz de reter histórias narrativas que giram entorno dela própria. E realmente, quem conhece a capital entende a importância do local para a população, mas diante disso a pergunta que fica é: ela realmente carrega essa capacidade?
A direção, tomada pelo artista plástico Luis Jungmann Girafa, é totalmente caótica. A proposta é simples, a de aplicar intervenções artísticas que se complementam com um texto fictício e representa a diversidade encontrada na área. A W3 Sul é um local hoje em dia composto por uma população cada vez mais velha, empurrando jovens necessariamente da classe média para a chamada Asa Norte ou regiões administrativas mais distantes. Por esse lado, a velha história de Brasília permeia de qualquer forma dentro do filme. Não existe forma alguma de se distanciar de tal, é intrínseca dentro do contexto. A experimentação da sua própria forma que surge naturalmente forma uma pretensão. Os personagens que não possuem muito do que falar e que repetem tantos tons, como uma espécie de necessidade constante de manter a duração, que por sinal não é de forma alguma longa. São setenta minutos que não correm, diante da tela preta e branca sem vida. Seus momentos não possuem um fundo além do visível, são intérpretes generalizados do que consiste a camada transeunte da capital. O tal do candango, por muitas vezes dito.
O que antes poderia ser muito mais o carro-chefe de “Acaso”, torna-se seu pior pesadelo. A avenida onde se gira o seu filme é constantemente filmada em formato fechado, focado tanto nos atores que perdem seu próprio direcionamento do universo. A visão percebida diante da tela é de que cenários constantes e importantes da W3 são como o nada; algo que não importa mais, nem como secundário. É algo sem vida, sem nada além. Jungmann parece que não sabe exatamente o que quer, tão focado nas intervenções que remetem ao cineasta Sérgio Bianchi, mas que definitivamente não se aproximam de verdade desse cinema. Esse último uma vez disse “O terrorismo é uma alternativa, temos de atacar aqueles que ferram o país”. É um tanto radical, mas um radicalismo bom. No filme analisado, nada parecido é visto, é bem longe na verdade. Possui cenas que indicam um tratamento até interessante, bem observado. Um deles é uma oportunidade, quando um de seus personagens se troca e um morador local o questiona porque está sem camisa no meio da rua. A Asa Sul é um local burguês, muitas vezes elitista, palco central de uma discriminação e ao mesmo tempo a dualidade, com pedintes. Logo cerca do local filmado, está o palco do assassinato do líder indígena Galdino, queimado no Dia do Índio por quem morava na área. Anos depois, um outro habitante matou dois moradores de rua, no coreto da praça do primeiro crime. Mais cerca ainda está o Cine Brasília, onde o próprio Festival de Brasília acontece. Uma metalinguagem para viagem para acompanhar, então.
Sim, é bem claro o que o cineasta procura através de entregar seus experimentalismos. Talvez não sejam idealmente reproduzidos, nem um pouco filmados. A tela encontrada depende o suficiente da localização e de uma noção prévia da cidade. Brasília esmaga quando questionado e “Acaso” está longe disso. São perguntas reformuladas de formas bobas, montadas sem ritmo e que evidenciam inclusive um amadorismo. Inclusive a falta de profissionalismo seria muito útil ao projeto, mas de alguma forma assustadora ela se sabota. É bizarro. Jungmann não parece estar com o caráter analítico afinado para dar corda total à sua antropologia arquitetônica e social. O que resta ao filme é rir, como o faz constantemente das coisas, de si mesmo. As tentativas de criação de personagens variados lhe faria melhor em caso de possuir algo a mais além da junção final, musical. Pelo menos, para aqueles que o conhecem, a aparição final do ator Andrade Júnior antes de sua morte refaz um sorriso em tempos tão cinzentos em que vivemos.