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A Vizinha Perfeita

Afinal, o que é depoimento?

Por Vitor Velloso

Festival de Sundance 2025

A Vizinha Perfeita

Existe algo de interessante no debate acerca dessa relação entre os registros audiovisuais e a vigilância, sobretudo enquanto um aparato monopolizado pelo Estado. Por mais que parte dessas discussões não consiga passar de um campo moral, elas provocam algumas reflexões sobre a tênue linha entre a instrumentalização desses recursos para a garantia de direitos e a violação dos mesmos, de forma desigual e sempre relacional. Quando o próprio dispositivo não é propriedade do Estado, ele está vinculado a algum tipo de ideologia, bastante clara e reacionária. Por exemplo, em 2019, um sujeito da extrema-direita fez uma live de 17 minutos e cometeu uma chacina em duas mesquitas na Nova Zelândia. Enfim, os exemplos são muitos, mas normalmente existe uma ideologia facilmente reconhecível nos portadores desses registros, assim como em suas intenções. Aliás, o trabalho da Forensic Architecture é digno de nota, em especial “The Killing of Harith Augustus”.

Contudo, o documentário da Netflix “A Vizinha Perfeita” assume uma perspectiva um tanto diferente. O filme de Geeta Gandbhir utiliza os registros feitos pela body cam dos policiais para compor quase todo o projeto, articulando as idas da polícia à casa de Susan Lorincz, seus “depoimentos” (aqui há uma outra dimensão para o termo) e os das pessoas da vizinhança. Está claro que existe uma estrutura que oferece ao espectador a possibilidade de refletir sobre os aspectos sociais e raciais que estão em jogo, mas o filme em si não se posiciona diretamente sobre isso, ou não de forma verbal. A montagem, assinada por Viridiana Lieberman, faz questão de opor esses discursos-depoimentos, que oficializam cada fala, transformando-a em registro legal utilizado aqui no documentário. O exercício é interessante, especialmente para entender como esse dispositivo é realizado sem registros da própria cineasta, ou com quase nenhum. Contudo, a proposta se torna exaustiva, talvez por uma saturação dessa coisa modal do true crime e de produtos oriundos de ideologias similares. Aliás, não é como se o longa fugisse dessa categoria ou fizesse crítica direta ao subgênero; pelo contrário, apropria-se das particularidades desse momento de grande crescente de um certo fascínio por crimes, criminosos etc. (a exemplo da espetacularização de assassinos impetuosos como Ed Gein, Dahmer e outros).

Porém, ainda que haja uma utilização desses artifícios, até pela recusa de outros materiais ou fontes documentais (como dito anteriormente, aqui o dispositivo registra o depoimento enquanto tal, não uma mera entrevista), “A Vizinha Perfeita” consegue ter vida própria nesse campo repleto de relações estranhas com a morte e seus algozes, pois reúne material suficiente para dar vida à vizinhança, permitindo que o espectador reconheça espaços, situações e até a geografia geral de tudo o que está acontecendo, sem a necessidade de tomadas de contextualização que normalmente cumprem essa função. Também há um distanciamento em relação aos demais produtos dessa prateleira, por não romantizar essa situação (por mais que a trilha sonora seja constrangedora) e por não recorrer à narração que dramatiza o acontecimento. Em verdade, tudo o que vemos são registros reais, depoimentos gravados enquanto “prova”, caso fosse necessário, e que aqui se tornam material para a construção de um filme.

O exercício cinematográfico de Geeta Gandbhir irá se popularizar, não tenha dúvida. Em breve veremos uma série de filmes que se utilizarão desses registros de vigilância e de materiais de arquivo produzidos pelos próprios agentes do Estado, com um fim artístico ou de entretenimento. A prática em si não é necessariamente nova, mas a presença em um catálogo como o da Netflix traz uma visibilidade diferente, bem mais expandida e que, como dito, traz consigo uma parte do público que se delicia em frente à televisão vendo histórias terríveis, de brutalidade humana extrema, como forma de entretenimento. A dúvida é saber onde começa uma coisa e onde termina a outra.

“A Vizinha Perfeita” estrutura bem parte de seu discurso social por meio das imagens cedidas pelos registros da body cam, inclusive no interrogatório, apresentando o racismo dessa sujeita, a vida de parte das pessoas que sofriam com suas ameaças constantes e conseguindo introduzir o público nesse universo particular que a montagem articula. Mas tem alguma dificuldade de contextualizar a região, os históricos, a motivação pela permanência, questões que estão fora do escopo da representação da obra e que um documentário tradicional (talvez!) pudesse trazer à luz.

3 Nota do Crítico 5 1

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