A Substância
Até que ponto você iria para ter a melhor versão de si mesmo?
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Cannes 2024
É, o cinema ainda tem muito disto: gerar filmes tão surpreendentes que só nos resta adjetivá-los como obras-primas. É, a maestria da sétima arte está no fato de que sempre reconhecemos quando um filme atravessa padrões narrativos e consegue retirar o público de suas zonas de conforto. Um desses exemplos foi exibido aqui na mostra competitiva à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, “A Substância”, da realizadora francesa Coralie Fargeat, já cult no meio independente por seu “Vingança” e “Reality+”. O burburinho foi tanto logo após a primeira sessão de imprensa que o filme gerou definições imediatas e apaixonadas de melhor obra exibida até o momento. Pois é,” o que explica então todo esse fenômeno?
Talvez a interpretação de sua protagonista, interpretada de forma intensamente entregue, figadal e sem “grades de proteção” pela atriz Demi Moore, que resolveu tornar esse papel o melhor de sua carreira, desde sua participação no sobrenatural romântico “Ghost – Do Outro Lado da Vida”. Talvez o roteiro, que incorporou referências do cinema de gênero (especialmente do gore, que infere “A Mosca”, “Alien” – e mesclou no realismo fantástico da escatologia), mas se preocupou em trabalhar isso tão bem que construiu uma obra única. Talvez pela ousadia da direção em não sucumbir aos desejos padronizados de Hollywood – ainda que seja uma cineasta francesa (talvez reside aí sua maestria) e manter até o final a sensação de estranheza e de organicidade visceral das substâncias corpóreas, tudo desenhado e orquestrado com uma cuidadosa precisão técnica.
Sim, como disse, “A Substância” vai além desta compreensão humana, mais limitada em nossa contemporaneidade, e embarca numa metáfora insana, de loucura comportamental, massificada pela linha pensante da sociedade (com suas regras sobre aparências doutrinadas, impossíveis de serem seguidas), para abordar os limites do ser humano, enquanto produto visual aos outros. O filme passa inclusive pela crítica às constantes plásticas e harmonizações faciais que sempre pulularam nos tapetes vermelhos das premiações de cinema estadunidense. Sim, tudo isso já por si só é um argumento mais que vendável. Mas quando “A Substância” pega uma atriz famosa e desconstrói sua imagem de perfeição e do próprio modo de existir, então é aí que o filme ganha uma carga extra de “colhões”. O que faz alguém ser bonita? Que criatura modelável os outros querem que a gente seja? Se o ser humano for igual à imagem e semelhança de todos, cadê as diferenças que nos tornam únicos? Que imperfeições incomodam tanto? Por que o outro nos incomoda tanto?
Sim, todas essas interrogações são recorrentes ao longo do filme, que praticamente buga toda e qualquer cabeça. “A Substância” é um experimento catártico, etarista e também transcendental (em forma laboratorial-científica) à busca máxima da beleza e da juventude para frente. Retardar o morrer. Mascarar a velhice. De um ovo sendo enxertado até o aceite do elixir contra o envelhecer e contra o desaparecimento da própria identidade inventada pela ficção real. Ser sempre lembrada na mídia, ter sempre o nome na Calçada da Fama de Hollywood, tudo é sobre o sempre. É o mundo do entretenimento é cruel. Artistas “estrelas” perdem seus lugares no topo no estalar dos dedos e para não “largar o osso”, é preciso se submeter as mais ridículas situações, como dar aula de ginástica ao vivo. Sim, até aí a crítica está bem hermética, até que o filme gira a chave.
“A Substância” adentra em um presente diferente, em uma realidade alternativa, em uma atmosfera de descolamento do normal já conhecido. Fica repugnante, fica estranho, as reviravoltas conduzem o espectador a um episódio “Black Mirror” com “Além da Imaginação”, como a mosca nadando na bebida. Só que real, inclusive sua metafísica microscópica de desconforto social. E então a solução. Um programa para quem “sonhou com a melhor versão de si mesmo”. Sim, e assim “A Substância” toma sua melhor decisão: potencializa a estranheza, a intensidade e se permite perder todo o controle. Uma caixa. Um jogo inicial de comandos a serem seguidos. Durante 7 dias. E depois estabilizar os fluídos. Se torna outra, mas o preço é não saber, apenas confiar. E lidar com o sofrimento da volta. É aqui que preciso parar para não “soltar nenhum spoiler” e atrapalhar a surpresa do público.
“A Substância” é um filme de sensações extremas. De sinestesia em reflexos interiores e intimistas de neon. Uma fábula-terror social à moda de “Cocoon” (1985, de Ron Howard), sobre a dominação dos “bonitos” aos “diferentes”. A mensagem é a de que em algum momento o bastão precisa ser passado. De que a “jovem cópia sexy” (interpretada de forma irretocável pela atriz Margaret Qualley) precisa esconder o “corpo velho”. De que todos possuem o vício egoísta da atenção dos outros e sofrem a causa-efeito. É, mas qual a graça de não lembrar? Que atrativo então há nesta mágica da juventude? “A Substância” gera um final tão surreal, surtado, grotesco e apoteótico com as consequências da obsessão da beleza que nós somos paralisados com a violência metafórica que espirra na tela. É o ódio contra a carne velha. Torna-se um monstro, uma criatura que emerge toda sua unicidade, uma Frankenstein, uma Cisne Negro, um ser que acredita ter chegado à perfeição. “A Substância” é uma obra que é preciso assistir com o estômago, não por ser nojento demais, mas por ser um órgão que regula todas as emoções de nosso corpo.