A Prisioneira de Bordeaux
Etnografia social
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
“A Prisioneira de Bordeaux”, dirigido pela diretora francesa Patricia Mazuy, é (quase) um laboratório etnográfico. A palavra “etnografia” tem origem grega, sendo composta por “ethnos” (povo) e “graphia” (escrita), significando literalmente “escrita sobre um povo”. A etnografia é uma metodologia de pesquisa que envolve a imersão do pesquisador em um determinado grupo social para observá-lo e descrevê-lo em seus aspectos culturais, sociais e comportamentais. É o que diz a IA, essa ferramenta-síntese que invade nosso cotidiano.
Em princípio voltada para a antropologia, a etnografia veio pouco a pouco sendo aplicada em outros campos, como nos estudos de comunicação – onde se inscreve o cinema. “A Prisioneira de Bordeaux” é etnográfico na medida em que se desdobra em uma narrativa transcultural, ou cross-cultural, envolvendo classes sociais distintas e destacando como os contextos culturais moldam experiências individuais – e, em particular, como essas narrativas podem revelar semelhanças e diferenças na forma como a classe social é entendida e vivida nas diferentes culturas.
O melodrama telenovelesco, por exemplo, apoia-se na cross-culture, alimenta-se da curiosidade cruzada entre classes – o burguês da zona sul carioca quer conhecer hábitos e afetos do proletariado suburbano, e o proletário indaga-se como vive e comporta-se a classe abastada na sua intimidade. Alma (Isabelle Huppert) encontra Mina (Hafsia Herzi) pela primeira vez na fila de visitas em um presídio, onde ambos os maridos cumprem pena. Esposas e parentes obedientes deixam seus pertences em armários adornados com adesivos de frutas, enquanto cada uma de suas visitas acontece atrás de portas coloridas, um cenário onde emana uma atmosfera ordenada e respeitosa, obviamente muito diferente do que se esperaria de uma prisão no Brasil. Mina, entretanto, tem um chilique porque confundiu as datas e não poderá ver o marido nesse dia.
Impressionada com a assertividade impetuosa de Mina, Alma a convida para ficar em sua grande mansão em Bordeaux, para que ela não precise voltar para a distante Narbonne antes de retornar à prisão no dia seguinte. Logo Mina instala-se com filhos na casa e consegue emprego, graças à mediação da nova amiga, na clínica do marido de Alma, um neurocirurgião bem sucedido. Alma, solitária e sem filhos, vive no conforto entediante do privilégio de classe, assistida por uma empregada de origem checa: Mina, na periferia lower class, próxima à criminalidade. O afeto que se instala entre as duas, transcultural e improvável, constrói-se em cima de um pragmatismo recíproco – de certa maneira, ambas veem uma à outra como um meio para superar adversidades.
O eficiente desempenho das atrizes contribui para que não transbordem situações moralizantes – nem Alma está interessada em aprender lições de vida com a hóspede vinda de um ambiente inseguro e difícil, nem Mina deixa-se sensibilizar por um suposto ato de caridade de Alma. Os sinais de conflitos de classe, não obstante, são inevitáveis: a pena do marido de Alma, pelo atropelamento de mãe e filha, em que a primeira morreu e a segunda ficou paraplégica, é de apenas seis anos, e ele pode sair antes do prazo pelas conexões com a juíza do caso. O marido de Mina esteve envolvido em um assalto a uma joalheria, cumpre pena mais elevada e, pior, teria ocultado o destino de relógios roubados do parceiro do roubo, que exige ser ressarcido. A tensão é incontornável.
Nesse roteiro esquemático e bem construído – escrito pela cineasta e mais três colaboradores, entre eles Emilie Deleuze, filha do filósofo Gilles – a nota que introduz um sutil (mas pervasivo) curto-circuito é a personalidade afirmativa e frontal de Alma, blindada pelo conforto material que o status proporciona – porém desgastada por uma relação marital de altos e baixos, traições e decepções. O destaque nesse aspecto fica por conta do excepcional talento de Isabelle Huppert, nos impulsos súbitos em que pula no colo do marido, na prisão, e no momento em que se aproxima e toca a surpresa (e arredia) Mina. Seu arrojo final é a confirmação dessa impulsividade.
O diretor de fotografia Simon Beaufils definiu seu trabalho em “A Prisioneira de Bordeaux” dessa forma:
Um filme diurno para o qual buscávamos, acima de tudo, suavidade, gentileza, riqueza de cores na pele e atenção delicada — um filme sobre rostos
O rosto solar e ambíguo de Huppert diante do rosto bruto e doce de Herzi – é nesse diálogo de imagens, transcultural por certo, que o filme de Patricia Mazuy engendra sua audiência.