Curta Paranagua 2024

A Ordem do Tempo

O tempo distorcido

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2023

A Ordem do Tempo

Até as palavras que agora dizemos

o tempo, na sua voracidade,

já arrastou,

e nada retorna (Horácio)

Liliana Cavani é uma prolífica autora, no circuito de cinema e TV desde o início dos anos de 1960: definitivamente, não é pouca coisa, é na verdade um caso raro de uma verdadeira militância audiovisual. Pois em 2023 Liliana completou mais um filme, “A Ordem do Tempo”, aos 90 anos! Em uma carreira diversificada, a diretora ostenta filmes-referência – como “O Porteiro da Noite” (1974), com Dirk Bogarde e Charlotte Rampling, e “A Pele” (1981), com Marcelo Mastroianni – ao lado de inúmeros trabalhos para a televisão, entre documentários e ficções históricas, no tom cultural-pedagógico da RAI italiana.

Essa longa militância desemboca, de certa maneira, no filme em tela – uma ficção levemente científica, um fim-do-mundo dramatizado de modo propositalmente fugaz e superficial. Mas que se presta a toques e percepções não apenas das vivências e dúvidas dos personagens, como também de assuntos vastos e impenetráveis – cosmologia, por exemplo. Um pequeno grupo de casais amigos reúne-se na casa de praia de um deles para celebrar o aniversário da anfitriã, 50 anos. Todos brancos, burgueses, com formação acadêmica: o anúncio de um asteroide que se aproxima da Terra, com potencial devastador, desestabiliza (mas não muito) o ambiente. Quem acende o alerta é a doméstica peruana Anna, que trabalha na casa – a única exceção social na galeria de personagens.

A Ordem do Tempo” é livremente inspirado em um livro-ensaio homônimo de divulgação científica de Carlo Rovelli, físico e cosmólogo italiano igualmente prolífico em publicações, traduzido mundo afora, também no Brasil. A citação acima do poeta latino Horácio abre o referido livro, dividido em três partes: a desintegração do tempo, o mundo sem tempo e as fontes do tempo. Liliana Cavani, no espírito cultural-pedagógico que orientou boa parte de seus filmes, adaptou conceitos emanados por Rovelli a falas e circunstâncias de seus personagens, acrescentando camadas de passados individuais encaixadas em uma narrativa habilmente elaborada. Existimos no tempo ou o tempo existe dentro de nós? pergunta-se o principal interlocutor da trama, o físico Enrico (Edoardo Leo), ele mesmo atormentado pela relação amorosa não consumada com Paola (Ksenia Rappoport). O tempo, ou o amor, é ou não é, eis a questão.

Bons atores e boas atrizes ajudam a impedir que “A Ordem do Tempo” caia em artificialismos arbitrários – e aí a experiência de Cavani, diretora e corroterista, prevaleceu. Ela consultou longamente Rovelli durante a escrita do roteiro, convidando-o para passar uma semana no set de filmagem. Às considerações abstratas de Enrico – o tempo é distorcido, e o espaço é curvo – contrapõem-se os dramas pessoais que lidam com o tempo, essa variável que nos aflige (e aos personagens) diariamente. Como nossas escolhas feitas durante o curso da vida ecoam no presente? Como organizamos (ou desorganizamos) o fluxo diário do cotidiano, esse tempo convencional comumente (e erroneamente) identificado como o tempo em si?

Talvez a opção da realizadora de insistir na superficialidade e leveza das situações possa incomodar parte da audiência – estamos em um filme que se propõe a criar cenários simplesmente para veicular pensamentos sobre tempo e cosmologia, inclusive a ideia apocalíptica de que o tempo pode acabar a qualquer instante. Isto é tratado quase como um fait-divers – ninguém fica particularmente angustiado com essa perspectiva. Salvo Anna e Enrico, que exprimem por vias diversas uma preocupação maior sobre o assunto, não há cenas de desespero ou histeria coletiva. Se o fim-do-mundo chegar, será mais um dado a preencher nosso mundo empírico, como uma palmeira que balança ao vento.

Nessa altura da vida, com 90 anos, Liliana Cavani procurou sobretudo fazer um filme despretensioso, que se apropria – com leveza – dos pensamentos de Carlo Rovelli para passar seu recado. Entre a certeza e a incerteza total existe um precioso espaço intermediário, e é neste espaço que nossa vida e nossos pensamentos acontecem, disse o físico-pensador.

Nosso tempo distorcido foi generoso, finalmente, com a diretora. Em 2023, seu filme foi exibido hors-concours no Festival de Veneza e ela ganhou o Leão de Ouro pelo conjunto da obra, homenagem mais do que merecida. Como diz a sabedoria popular (sobre distorção do tempo): a justiça tarda, mas não falha.

Ou ainda, como Rovelli: A emoção do tempo é precisamente o que o tempo é para nós. O tempo somos nós.

3 Nota do Crítico 5 1

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