A New Old Play
Memórias antes do fim
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
O maior destaque da Concorso Internazionale na presente edição de Locarno é “A New Old Play” de Qiu Jiongjiong, uma obra que se constrói em torno de uma retomada histórica chinesa para criar um dos projetos mais criativos dos últimos anos. Uma comédia teatralizada que se debruça em uma representação pouco convencional do cenário político e social que culmina na Revolução Chinesa. Tratando da fome e da dependência do povo Chinês, a narrativa inicia com uma projeção mitológica entre demônios, inferno e a proposição milenar para a compreensão das manifestações artísticas que tomam conta de seus personagens. O tom cômico do filme surge nos primeiros diálogos, no retorno de uma figura e na névoa que paira nas primeiras imagens.
A dimensão dos espaços é fundamental para o funcionamento de uma obra que concentra uma revisão crítica nesse jogo cênico, onde o palco da história é a paisagem que toma conta dos enquadramentos. Um vigor formal atravessado por zoom escandalosos e personagens que atravessam o tempo como testemunhas das mudanças. Desde o início do Século XX até o princípio de Mao, o tom jocoso dos personagens faz de “A New Old Play” uma comédia flexível, capaz de provocar o riso de diferentes maneiras, seja com os “demônios aposentados”, o ópio ou a caça aos vermes nas fezes. “Essa bosta é propriedade do Estado”. A paródia possui uma verve dúbia na posição política, satirizando o ódio aos comunistas mas criando espaço para críticas nessa transição. E poucas escolhas poderiam conduzir melhor uma perspectiva estética que uma Companhia de Teatro que vê suas expressões particulares e coletivas se moldando a partir da realidade.
Conforme o longa explora uma série de dispositivos distintos para contar sua história, o espectador vai mergulhando nessa transa de estilos, desde personagens que possuem falas escritas, à contextualização em textos breves que surgem na tela e canções com coreografias que idealizam certas relações, sem perder de vista a construção social que concretiza a situação material para o que a China viria se tornar. Aqui, o avanço tecnológico e as novas conjunturas tornam certas figuras decadentes, escondidas, procurando as sobras na calada da noite, enquanto a febre anti-comunista toma conta. É a dissolução de um momento que vai dando origem a outro. Contudo, há uma verve contundente quanto à necessidade da arte para o povo, que caçoa do movimento como uma manifestação menos lírica e cria relações diretas com a política anterior. “Cante ou eu atiro em você” é uma das mediações que cruza o tempo, em espaços semelhantes.
Até onde “A New Old Play” reconhece essa construção sócio-política como registro geográfico? E onde começa a encenação e termina a crítica? Existe progresso ou o filme acredita apenas em uma manutenção simbólica? As respostas são dialéticas e findam em um imbróglio estético que pouco abre margem para resoluções concretas, ainda que um diagnóstico dicotômico seja realizado, a obra não procura estruturar uma consciência que se encerra em si. A proposta é a compreensão dessa encenação como síntese política dos contrastes geracionais e da expressão de necessidades, onde os sonhos e lirismos são interrompidos pela materialidade.
Sem grandes aproximações categóricas com “Berlim Alexanderplatz” do Fassbinder ou a gira fundadora de “A Idade da Terra” de Glauber, Qiu Jiongjiong realiza aqui uma tomada de espaços políticas que se tornam fronteiras ideológicas, com transgressões vistas na dualidade da forma. O cinema teatralizado recorre ao anti-naturalismo como expressão limítrofe contra o ocidentalismo e grilhões ideológicos tacanhos. É provável que a falta de clareza em certas posições incomode uma parte do público, mas é na explicitação do jocoso que as dimensões ganham forma aqui, em um rigor que não desperdiça nenhum espaço e nenhum tempo diante da objetiva. As três horas de duração são sintéticas e diretas, mesmo que não tão dinâmicas, e é capaz de projetar reflexões e encontrar humor com uma facilidade raramente vista. A tradição do cinema Chinês transa com a história, o teatro e a pintura, o resultado é um projeto multifacetado, versátil e que faz uma revisão crítica da representação através dela mesma. Não é apenas uma tradução metalinguística vulgar, é uma compreensão amadurecida dos limites com aquilo que trabalha. A linguagem é a consciência prática, e como tal, não é valor de troca. Quando um bebê retorna aos braços da mãe e dá lugar à uma abóbora para a família, fica claro que as necessidades da classe leva em consideração certas afetividades.
“A New Old Play” discute o inferno e a fome, mas filme um palco histórico de representações que retomam a necessidade do sonho.