A Mulher Que Fugiu
Beber, comer, viver, amar e ouvir histórias
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2020
Há quem diga que o realizador Hong Sang-Soo conta sempre as mesmas histórias com sutis alterações. Não. De forma alguma. Pelo contrário. Considerado um Woody Allen com Eric Rohmer da Coreia do Sul, o diretor, que está mais para Anton Chekhov, imprime uma característica muito difícil de captar: naturalizar ações com uma inerente espontaneidade do tempo. Em seus filmes, a atmosfera do instante torna-se um universo paralelo de observação. Ao ouvir conversas em encontros acasos-casuais, nós espectadores somos transportados a uma ficção, que soa real, quase documental, ainda que saibamos que tudo ali é uma ilusão. Em “The Woman Who Ran” (“A Mulher Que Fugiu”, em tradução literal), exibido na mostra competitiva do Festival de Berlim 2020 (e que foi premiado com o Urso de Ouro de Melhor Diretor), possibilidades, “orquestradas” por um “Universo” diretor, são conduzidas como uma obra de situações, entre cervejas, cafés, ideias subjetivas, por vezes imaturas e passionais, quiça idiossincráticas.
“A Mulher Que Fugiu” desenvolve-se pela metafísica do olhar, quase metalinguagem, de bastidores encenados. Sua câmera, com zoom explícito (à moda da Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e François Truffaut), cria uma sensação. Uma consequência de verdade etérea. Contempla-se o cotidiano mais banal, mais pessoal, mais particular e mais intimista, como por exemplo, a primeira cena focar e uma galinha. Toda essa estrutura, de estética (e tecnicamente lapidada) organicidade caseira, constrói uma conflito não peremptório, que vai do artificial (protocolar e diplomática socialmente nas relações humanas – uma educação automática) ao aprofundado, para mostrar o processo de se cavar as “verdades da vida”.
Aqui, a narrativa (de percepção editada por detalhes), de humor natural, semelhante às esquetes crônicas da primeira temporada do seriado “Tales of The City” (disponível na Netflix), almeja traduzir, por discussões de relacionamento e pelo tempo real do preparo de uma comida (e/ou o tempo de um cigarro), uma ingenuidade do mais intrínseco querer, como a música de um teclado que recupera a inocência perdida. “A Mulher Que Fugiu” é sobre a própria vida. Comer, beber, viver, amar, questionar e procurar melhorias (com um que de Ang Lee, não podemos negar). Nesta antropologia-análise (reviravoltas, casos, timidez e hesitação), existências expandem opções. A “permissão” da tristeza e de “ter medo de gatos”; e/ou o entendimento do “instinto de sobrevivência”; e/ou a de ser “vegetariana”. Sang-Soo, dessa forma, respeita a cultura comportamental de seus integrantes próximos. O da solidariedade, por exemplo, lembrando em muitos momentos e pontos o filme “Parasita”, de Bong Joon Ho.
“A Mulher Que Fugiu”, quando conquista seu público pela facilidade, mergulha na seara do psicológico, bagunçando memórias, lembranças e “peixes”. As bebidas ficam mais “adultas”. As “visitas”, mais frequentes. Quer a jornada de “sentir o amor uma vez”. “Isso é amor? Os coreanos são tão ruins. É difícil encontrar alguém”, diz-se entre um misto de deboche, pessimismo, crueldade, humilhação, resignação, resiliência, “arrependimento tardio” e “sinceridade demais”, soando uma novela “olhada” pela câmera de segurança. E assim, novas “pistas” confundem ainda mais o espectador. Será tudo uma criação brainstorming de uma roteirista-crítica? De um cinema “tempo de pausa” com “apenas duas pessoas”?
No longa-metragem, a impressão que temos é a de que seu realizador quer ensaiar uma crítica ao mundo atual. De uma época estranha, fora de tom e com pressa de acontecer e sem os elementos humanos que deveriam modelar os indivíduos sociais. “A Mulher Que Fugiu” não tem nada de ordinário e de repetitivo das obras anteriores de Hong Sang-Soo, até porque por mais que se queira (o próprio diretor já ensaiou isso em alguns filmes), nenhuma história consegue ser reconstituída em sua plenitude. Sempre haverá um detalhe, um olhar diferente, um pensamento novo que refaz a naturalidade do antes com o ineditismo do agora presente. Em seu 24º filme, Sang-Soo preserva seu mais característico olhar minimalista, porém complexo, apresentando três encontros com pequenas repetições e variações.