Mostra Um Curta Por Dia 2025

A Invasão

Por dentro da alma da Ucrânia

Por Fabricio Duque

Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024

A Invasão

Serguei Loznitsa é um cineasta ucraniano, e, como tal, conta histórias, em seu cinema, sobre sua terra natal, algumas históricas (e especialmente as atuais) não tão agradáveis. O realizador também é híbrido em suas escolhas e neste momento se encontra muito mais na experimentação da imagem (do documental “caseiro” e não na simulação ficcional) como elemento de simbolismo político-social, acreditando assim que a realidade dá embasamento causal às explicações do agora. Loznitsa é um antropólogo do olhar, um observador dos comportamentais humanos, um ornitólogo da fauna dessa selva que o atravessa muito mais, por este ser seu meio. É um coletor de crônicas ucranianas. Com sua câmera, sua melhor arma para documentar e perpetuar, investe toda sua vida na resistência das vidas da população civil em toda a Ucrânia contra as invasões bárbaras. Em “A Invasão”, exibido aqui na mostra não competitiva do Festival de Cannes 2024, Serguei Loznitsa imprime o que mais sabe fazer: dar foco e “fama” a essas pessoas que estão mo meio da batalha. 

“A Invasão” também traz outra característica de seu diretor: o de prolongar as cenas (mais cruas e pragmáticas – sem nenhuma suavização), para que assim possamos ter o contexto geral, e, dessa forma, gerar uma maior conexão-identificação, mais empática, porém contida, e “protegida”, com o público. O filme começa com a câmera filmando soldados com caixões entrando em um templo religioso bizantino-ortodoxo. A solenidade envolve a dor do luto em orações. Loznitsa constrói toda a narrativa pelo cinema direto, com close nos rostos, buscando captar as expressões das emoções internas, ora em planos rápidos, ora bem estendidos, entre barulho de sirene e “glórias a Ucrânia”. 

O documentário aqui é um filme homenagem, uma ode ao povo ucraniano, que luta para preservar suas essências, lugares e seus passados. A guerra com a Rússia vai muito além disso. “A Invasão” quer “infiltrar” em quem assiste, além da empatia de sofrer e se comover pelo outro, mas também a contemplação da organicidade desses participantes patrióticos, ativos e que, quando a câmera se aproxima, mostra que são pessoas como qualquer outra, humanos no mesmo processo de sobrevivência diário, entre seguimentos de tradições, formalidades sociais, casamentos e até mesmo encher as garrafas de água (por causa das limitações consequentes e logísticas dessa “nova vida” em guerra). O que se projeta é a existência normal. O cotidiano. O coloquial. O dia-a-dia. Ali, ninguém tem para onde ir. Precisam entrar na briga para proteger seus territórios (bens materiais “possuídos” de histórias e particularidades sentimentais) e suas culturas originárias. Ainda que seja entre bombas, alarmes, mísseis e medo, há sempre a esperança do fim. De dias melhores. 

Em “A Invasão”, Loznitsa quer nos conduzir pela câmera-mosca, não percebida, num que bem referencial às obras de Frederick Wiseman, e que assim busca filmar o invisível, o tempo suspenso, a metafísica exata da ideia. E ao fazer isso, vem à tona uma enxurrada de universalidades: ingenuidades, sensibilidades, felicidades desmedidas, propósitos simples e batismos em águas russas. Se pensarmos à fundo, uma guerra é causada por preciosismos idiossincráticos e subjetivos de um “maioral” (que tem um certo controle mundial), que vê um espaço de terra (muito provavelmente por petróleo ou outra fonte de energia) a sua “Nutella”. Não faz sentido. 

E é dessa forma que Loznitsa quer nos mostrar os efeitos de sua guerra. Nos tornando olheiros passivos. Nos documentando essas histórias pelo tom pessoal e intimista, mas ao mesmo tempo coletivo. É como se o micro fosse o coadjuvante soldado do macro protagonista dominante. Todos ali lutam por interesses iguais. A de preservar suas identidades. Desde sempre, os ucranianos tem um embate com os russos, pela história secular da Rússia de tentar suprimir a língua ucraniana e perseguir autores ucranianos por meio de proibições, prisões e violência. No romance “O Orfanato”, de Serhiy Zhadan, autor mais celebrado da Ucrânia hoje, aborda-se o impacto da guerra na vida ucraniana pela ficção metafórica, em que o leitor é a própria testemunha do início da guerra em Donetsk em 2014 pelos olhos de um professor apolítico. 

“A Invasão” é exatamente isto: uma jornada por dentro do cotidiano ucraniano, sendo perspicaz o suficiente para discutir racionalmente pontos unificadores e discordantes do diálogo. Devemos então banir Dostoiévski, por ser russo? E o que fazer com Nikolai Gogol, que “não sabe” qual lado do Império Russo está? Todos perdem nessa polarização tóxica. Destrói-se monumentos e passados e quem perde é o futuro. E Loznitsa está sempre ali, com sua câmera-arma, tentando, quase de forma naif, que suas imagens possam chegar ao mundo, para ajudar e salvar seu país. Talvez essa característica, a da genuína e incondicional crença que o “bem vencerá”, seja mesmo a alma da Ucrânia. 

4 Nota do Crítico 5 1

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