A Incrível História de Henry Sugar
Adaptação literária literal
Por Pedro Sales
O escritor Roald Dahl é um dos autores mais conhecidos da literatura infanto-juvenil. São dele as obras “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “Matilda” e “Bom Gigante Amigo”, todas com adaptações nos cinemas. Além dessas, Dahl também escreveu “O Fantástico Senhor Raposo“, obra que se tornou filme nas mãos de Wes Anderson. Recentemente a literatura do autor passou por revisionismo em razão de trechos considerados “sensíveis”, mas também há pouco, teve mais obras adaptadas para o cinema. Anderson retomou então o contato com as criações de Dahl e realizou quatro curtas lançados diretos pela Netlfix: “O Cisne”, “O Caçador de Ratos”, “Veneno” e “A Incrível História de Henry Sugar“, o com maior duração e objeto deste texto. Nos curtas, o diretor reafirma o formalismo tão consolidado de sua filmografia, assim como demonstra a predominância de uma linguagem narrativa cada dia mais evidente, desde “A Crônica Francesa“.
Henry Sugar (Benedict Cumberbatch) é um homem rico, daqueles que não é mau, mas também não pode ser chamado de bom. Após ler um livro, ele se torna obcecado para aprender a ver com os olhos fechados. A técnica, para ele, é uma forma de trapacear no cassino e enriquecer. A história, contudo, não é só de Henry, mas de Imdad Khan (Ben Kingsley), do Dr. Chaterjee (Dev Patel) e de Roald Dahl (Ralph Fiennes). Ou seja, Wes Anderson trabalha neste filme em uma escala maior com um tipo de narrativa que ele tem usado com frequência: a narrativa moldura. Basicamente, é só um nome bonito para dizer que tem uma história dentro da história. Em “A Crônica Francesa” isso acontece com os artigos da revista que compõem a história maior, a publicação. E no recente “Asteroid City“, a história se subdivide em atores ensaiando uma peça, em preto e branco, e a peça em si, com a fotografia colorida.
Em “A Incrível História de Henry Sugar“, por outro lado, a alternância de personagens é constante. Roald Dahl nos conta a história de Henry Sugar, que lê o livro do Dr. Chaterjee, que conta a história de Imdad Khan. Portanto, aqui brinca-se muito com o recurso da narração, quem conta a história? Nesse sentido, o filme se torna uma adaptação literária literal na medida que parece uma transcrição palavra-por-palavra do texto original. Isso cria, em um primeiro momento, um senso de desorientação, sobretudo pela narração acelerada dos personagens. Mas logo o espectador-leitor se ambienta com essa lógica frenética de contar histórias e ao humor que existe nessa abordagem. Os personagens, por exemplo, quebram constantemente a quarta parede e utilizam os verbos de elocução, como “‘Você não deveria fazer isso’, disse eu”, algo estranho mas que preserva a literariedade.
Outro aspecto bastante evidente da direção de Anderson e presente aqui é o formalismo. O cineasta é amplamente conhecido por uma mise-en-scène muito própria, com tons pastéis, planos extremamente simétricos e movimentos de câmera bem delimitados, como os travellings laterais e os dollys que aproximam e se afastam dos personagens. Tudo isso se faz presente no curta-metragem, afinal, é a assinatura do diretor. O artificialismo provocado por tais escolhas estéticas jamais soa deslocado da proposta fantasiosa da história. Pelo contrário, elas reforçam o tom por meio das trucagens de levitação, das mudanças de cenários, todos planos e sem profundidade de campo, da aparição e exposição de contrarregras para ajustarem as cenas e, por fim, da reciclagem de atores, que constantemente aparecem na tela interpretando mais de um personagem.
“A Incrível História de Henry Sugar” demonstra, antes de tudo, a consolidação do autorismo de Wes Anderson, o qual esteve atrelado inicialmente a um aspecto formal e agora avança para o narrativo. Para além dessa marca na filmografia do diretor, esta é uma obra que brinca com a adaptação literária. Parece até uma resposta cínica àqueles espectadores que tanto reclamam da falta de fidelidade na transposição dos livros para as telas. Por mais que essa narração desgovernada dê um nó na cabeça de quem assiste, é interessante constatar como cada pedaço se associa ludicamente para o geral, renovando o interesse do público. É só conhecendo a história do enigmático Imdad Khan que é possível entender como Henry atingiu um nível de visão para além do nosso. Como ele se tornou capaz de ver vendado, sabendo qual seria a próxima carta entregue na mesa de 21 no cassino.