A História do Olhar
Ver não é um fardo
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
“A História do Olhar” começa com a sua personagem principal (o próprio diretor, Mark Cousins; este é um filme em primeira pessoa) assistindo a uma entrevista dada por Ray Charles ao The Dick Cavett Show. Nela, o músico afirma que, caso lhe oferecessem a oportunidade de voltar a ver integralmente, para sempre, ele recusaria; por outro lado, caso lhe oferecessem a oportunidade de voltar a ver por um dia, ele aceitaria, pois esse seria o tempo suficiente para gravar na memória as imagens que realmente lhe importam (como a sua família, por exemplo).
Para além disso, no entanto, a capacidade de ver seria, segundo Charles, dispensável: “Com algumas notícias de hoje em dia, existem algumas coisas que eu nunca vou querer ver. E lamento por vocês que têm que tolerá-las”.
É essa a declaração que vai motivar todo o desenrolar de “A História do Olhar”: após assistir à entrevista, no começo do filme, Mark Cousins dedicará os próximos dias de sua vida a problematizar as colocações de Ray Charles, demonstrando como, na verdade, o ato da visão é de suma importância no desenvolvimento cognitivo e estético do homem e que, ao invés de uma maldição, ele é uma benção.
Apesar da descrição feita acima, é importante destacar que Cousins não tem a pretensão de veicular um discurso de validade universal: estamos longe daqueles documentários expositivos que, a partir de uma voz em off impessoal, oferecem um ponto de vista unívoco sobre os assuntos abordados. O filme existe a partir do seu ponto de vista e, portanto, carregará a sua opinião e as suas impressões sobre as coisas, e não mais do que isso. Não se trata, portanto, de refutar um argumento a partir de um outro que o substitua, mas de oferecer uma visão particular das coisas e dizer: eis a maneira como eu vejo este assunto; olhe para essas imagens, sinta o que eu sinto e talvez pensarás da mesma forma. Em um dado momento da sequência inicial do filme, por exemplo, somos colocados a ver uma série de imagens gravadas por Cousins em diversos lugares do mundo segundo uma estética subjetiva: uma câmera-na-mão que não faz questão de esconder os seus movimentos erráticos, à maneira do caminhar de uma pessoa; a “frame rate” reduzida, a fim de imitar o processo de reconstituição mental das imagens…
Sendo um documentário de viés subjetivo, “A História do Olhar” parece também pouco preocupado com a construção de um argumento perfeitamente coeso: a estrutura, aqui, é a de um livre entrelaçamento de ideias. Pula-se de um assunto a outro com bastante espontaneidade, o que se por um lado garante ao filme uma certa energia, fornecida pelo ato de testemunhar uma mente compondo ideias em tempo real, por outro torna cada pequeno segmento do filme subdesenvolvido. Vejamos, como exemplo disso, uma seção do filme em que Cousins traça uma linha do tempo de sua vida a partir da evolução da visão: a infância é o momento em que aprendemos a perceber a luz e as cores. Aqui, abrem-se parênteses para discutir a diferença entre “lux” (a luz física) e “lumen” (a luz espiritual, metafórica); a psicologia das cores; o daltonismo… a adolescência, por sua vez, é quando começamos a comparar a nossa imagem com a dos outros. Daí vem a ideia de fracasso, quando não conseguimos reconciliar a nossa aparência com os padrões de beleza socialmente impostos; isso é ilustrado por uma cena em que Cousins narra uma versão mais jovem de si assistindo a “Taxi Driver” e percebendo que o seu corpo não é igual ao de Robert De Niro.
Referências aos mais diversos filmes aparecem à medida que Cousins lembra deles enquanto conta suas histórias (não poderia ser diferente com ele, autor de incontáveis filmes e livros sobre a história do cinema). Quando necessário, ele insere planos ou mesmo cenas inteiras de obras alheias e contextualiza a importância delas para o seu desenvolvimento pessoal. Essa mistura de material extradiegético com material diegético (as imagens do “mundo real” gravadas por ele) reforça a tese do filme, segundo a qual aquilo que vemos fica dentro de nós: passada uma certa quantidade de tempo, as experiências realmente vividas e as experiências acessadas através dos filmes se tornam parecidas em nossa mente, de modo que o espaço de um filme pode estar tão fielmente registrado na memória quanto um espaço real. Se o ato de viver e o ato de assistir a um filme são ontologicamente distintos, na memória tudo se iguala, tudo se mistura.
É dessa maneira que o filme se encerra: ao se deparar, em uma de suas viagens, com uma paisagem que o fez lembrar dos filmes de Abbas Kiarostami, Cousins — agora se imaginando algumas décadas no futuro, interpretando uma versão idosa de si — expressa a sua alegria por ter testemunhado tanta beleza. Mais uma vez, ele nega Ray Charles (“[ver] não é um fardo”), e, incapaz de achar palavras para descrever os seus sentimentos, desiste de continuar a narração. “Qual é a palavra? Não consigo pensar nela, mas consigo imaginá-la”.
Essa vontade de abandonar a linguagem em direção a uma experiência “pura” do mundo, guiada apenas pelos sentidos, nos lembra de Stan Brakhage em seu livro “Metaphors On Vision”: “Imagine um olho não governado por leis de perspectiva criadas por homens, um olho não influenciado por uma lógica de composição, um olho que não responde ao nome de tudo, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção. Quantas cores há num campo gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente do ‘Verde’? Quantos arcos-íris a luz pode criar para um olho desprovido de tutela?”
Se Cousins acaba por chegar na mesma proposta de Brakhage, ele não o faz com o mesmo sucesso. Enquanto a poesia de Brakhage é fruto de uma pesquisa riquíssima — em sua carreira, ele realizou mais de 300 filmes — que empreendeu transformar num estimulante e inovador fluxo de imagens o seu argumento, a poesia de Cousins é enfadonha e tautológica: diante da imagem bela que encerra o filme, ele não faz nada senão reforçar verbalmente a noção de que ela é bela.
O leitor poderá muito bem, portanto, assistir a “A História do Olhar” na nova edição do festival É Tudo Verdade. Mas talvez estaria fazendo um favor maior a si mesmo se, no mínimo, assistisse também a filmes como “Anticipation of the Night” (1958) ou “Dog Star Man” (1965).