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A Grande Entrevista

O Rei está nu

Por João Lanari Bo

A Grande Entrevista

O último plano de “A Grande Entrevista”, biopic da Netflix de 2024 sobre o fatídico diálogo do Príncipe Andrew com a jornalista Emily Maitlis, da BBC, é revelador: o príncipe levanta-se da banheira real, e caminha nu em direção aos aposentos, também reais. É um corpanzil, alto e pesado, meio deformado – trabalhado com alguns adendos, pode-se imaginar onde, segundo revelou o tabloide The Sun: uma prótese traseira para retratar o desgraçado real porque seu traseiro não era gordo o suficiente. O (excelente) ator Rufus Sewell, que encarnou o príncipe de forma magnífica, hesita por um momento, como se estivesse consciente de sua queda abissal – e prossegue nos deveres matinais.

O corpo do rei: Andrew é, apesar dos pesares, um príncipe, o irmão mais novo do atual Rei Charles III, filho (predileto) da Rainha Elizabeth II, logo seu corpo é parte indissociável do corpo real. Em algum momento, portanto, seu corpo se tornou representativo do próprio Estado: um estudioso do assunto formaliza esse fenômeno sócio-político da seguinte forma:

O corpo do Rei é o receptáculo de um conjunto de ideias estruturadas com base em uma mentalidade coletiva, em parte construída na absorção de inúmeras vertentes reinterpretadas por um cotidiano literário e iconográfico.

O Rei, logo, não tem apenas um corpo: além do corpo natural, essencialmente igual ao de qualquer pessoa, ele possui um corpo místico. A família real britânica, assim como as famílias reais em todo o planeta, aposta nessa duplicidade corporal para manter seu poder junto às massas devotas. Claro, o mundo girou desde os tempos do absolutismo da realeza, reis tiveram suas “cabeças cortadas” – Luís 16, na França, em 1793: e na Inglaterra, quando Carlos I aferrou-se ao direito divino da monarquia e acabou executado, em 1649. “A Grande Entrevista” pode ser visto, nessa ótica, como mais uma etapa de profanação do corpo real mitificado, que ainda perdura em nossos tempos.

E que, tudo indica, ainda vai perdurar por muito tempo – no século 21, na era da internet, redes sociais e inteligência artificial, os monarcas ainda encontram seu espaço, uma espécie de public relations semi-estatal. A entrevista de Andrew aconteceu em 2019, onde o envergonhado príncipe respondeu a perguntas da jornalista Emily do programa Newsnight, após ser acusado de proezas sexuais agenciadas pelo amigo Jeffrey Epstein. A detenção de Epstein pelo FBI teria precipitado a decisão de Andrew de conceder a entrevista: sua mãe, a rainha, não achava que seria uma boa ideia.

A entrevista terminou de liquidar qualquer esperança do malfadado nobre de escapar das acusações de celerado sexual. Acelerou um processo contra ele movido por Virginia Giuffre, encerrado por acordo de 16 milhões de dólares, pagos a Virginia e doação para instituições de caridade em apoio aos direitos das vítimas. A rainha, por seu turno, retirou de seu filho os títulos reais e militares em janeiro de 2022, incluindo “Sua Alteza Real”. Randy Andy, como é conhecido pela implacável boca do povo – algo como Andy Tarado – caiu inapelavelmente em desgraça. Só lhe restou esse laivo de charme arrogante, um tipo de humor beirando a estupidez que pode descambar para a agressão.

Como explicar então, num país soi-disant civilizado como é a Inglaterra, a manutenção dessa anacrônica casta de privilégios? A família real opera como uma empresa – é conhecida como The Firm, como começou a ser chamada no tempo de George VI, pai de Elizabeth II – tem um patrimônio estimado em 28 bilhões de dólares, vive de renda e também de subsídios governamentais, ou seja, pagos pelo contribuinte: no ano fiscal de 2021-22, o valor pago à Coroa para complementar manutenção dos castelos, salários de funcionários e viagens oficiais foi mais de 100 milhões de dólares. Um dos retornos desse investimento é funcionar como atração turística para deslumbrados em geral, sobretudo dos EUA.

Ações mais drásticas que poderiam minar o prestígio real são praticamente inviáveis, a realeza é muito reservada: estão isentos das leis de liberdade de informação vigentes no seu reino. Isso inclui informações sobre patrimônio e qualquer dúvida sobre os membros da família que poderia gerar suspeitas. Documentos relacionados ao Príncipe Andrew – cartas fazendo lobby por alguém, tratativas comerciais – serão liberados para escrutínio público somente em 2065. Até mesmo um político originário da esquerda do Partido Trabalhista, o ex-Primeiro-Ministro Tony Blair, confessou ter passado de um anti-monarquismo ferrenho a uma acomodação e mesmo enaltecimento do status quo da família real.

Tudo isso – tolerância cínica e estrutura medieval – vem à tona em “A Grande Entrevista”.

No filme, Rufus Sewell submeteu-se a horas de maquiagem e outras próteses que adicionaram camadas de rugas e gordura às bochechas, testa e até pálpebras. Treinou exaustivamente a famosa “mandíbula cerrada dos Windsor” para responder às perguntas de Emily.

Rufus disse ao The Sun: Andrew realmente tem essa qualidade de ser informal. Se você o ouvir, ao contrário do Rei Charles, ele parece um rapaz comum.

E completou: Ele é o Andy Tarado, que conversa com as trabalhadoras quando visita fábricas.

3 Nota do Crítico 5 1

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