A Flor do Buriti
Brasil e suas “boiadas”
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2023; Festival do Rio 2023
“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” foi uma obra de grande impacto no Festival do Rio no ano de sua exibição (2018) e teve um efeito muito positivo na cinematografia (luso)brasileira naquela edição. O novo filme da dupla João Salaviza e Renée Nader Messora segue alguns passos semelhantes do antecessor, mas à medida que o contexto brasileiro muda, os cineastas parecem reconfigurar algumas de suas características para construir “A Flor do Buriti”.
É bastante lógico que as cinematografias nacionais debatem temas políticos, sociais e econômicos de acordo com seus respectivos contextos e cenários, como reflexões, projeções e sintomas de uma determinada época. Da mesma forma, é nítido que algumas obras parecem envergar seus discursos para tratar das urgências de seu período histórico com a mesma verve que pode ser vista no centro de determinadas convulsões sociais. Eis o enfrentamento de “A Flor do Buriti” procura articular, uma reverência ao caráter íntimo da dupla de cineastas, com sua construção estética que emoldura o cotidiano como uma paisagem em si, ao mesmo tempo que ambiciona a exposição do caos vivido no país entre o período de 2018 e 2022, adicionando elementos contextuais que coloca o espectador em uma representação direta desse cenário. Assim, esse duplo front que os diretores almejam, coexiste de forma funcional até determinado momento da obra, especialmente nos minutos iniciais, onde parte das analogias se estabelecem, apresentando perigos, ameaças, bases históricas e a oralidade como um campo de síntese tradicional para introduzir o público nessa jornada. Contudo, essa estrutura possui um claro desgaste, pois à medida que avançamos na narrativa e parte desse contexto contemporâneo é introduzido, nota-se uma necessidade de abarcar uma gama de perspectivas diversas, tornando o projeto mais ambicioso, porém mais errante.
Por exemplo, a paciência de construção dramática e imagética que víamos em “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” ou nos primeiros minutos de “A Flor do Buriti” onde a cena do boi parece já entregar uma parcela das tensões ali projetadas, é abandonada para iniciar uma jornada que acumula informações e discussões, sem saber como finalizá-las. A princípio, o conflito cultural e geracional vai sendo exposto com uma complexidade intrigante, os diálogos que falam sobre uma transformação nos modos de vida dos nativos, desde o caçador que agora vai ao mercado até a criança pedindo um colchão para dormir, torna essa construção particularmente interessante, não apenas por tratar-se de uma perspectiva geracional que está em jogo, mas também por introduzir o debate político desde a necessidade de ir à Brasília defender seus direitos até acompanhar a Sônia Guajajara pelo celular. Não por acaso, existe uma perspectiva de debate das mudanças no país com as mudanças nas tradições originárias, especialmente na forma como introduz o homem branco como essa constante ameaça que limita a liberdade das crianças, cria perigos constantes, brutaliza a realidade ao seu redor e é constantemente violento durante a narrativa, mesmo que não haja uma personificação para esse mal. Neste sentido, é vigoroso como o longa é capaz de transformar seu debate em projeções espirituais, seja de forma literal ou não, e ainda assim nunca perder a realidade concreta como a situação transformadora dessa grande representação da realidade brasileira em determinado contexto.
A beleza de “A Flor do Buriti” está na lenta construção que amplia as possibilidades de compreensão de uma realidade particular, e total, do Brasil. Assim, as mazelas que são rememoradas pela oralidade, parecem se materializar em um contexto nacional tão nebuloso quanto as histórias que são passadas para uma nova geração, sabendo que sua sobrevivência é parcial. O problema é que essa enorme ambição acaba fragmentando a experiência, transformando o filme em uma belíssima poesia visual, mas que é atravessada pela necessidade de incluir pautas, temas e situações históricas, por conta da urgência de um Brasil que regurgita os piores pesadelos dos povos originários. E nesse contexto, o nascimento é celebrado como “mais um guerreiro” para o povo.