A Filha do Palhaço
Começar de onde parou
Por Pedro Sales
Mostra de Tiradentes 2023
Os laços sanguíneos não são o que definem uma relação. A consanguinidade, em momento nenhum, é garantia de um vínculo forte. Por outro lado, o convívio, este sim elemento fundamental, consegue unir as pessoas. Em “A Filha do Palhaço“, pai e filha lidam com esse impasse. Apesar de compartilharem o mesmo sangue, a distância do abandono faz dos dois quase estranhos. No longa vencedor do Júri Popular da Mostra de Cinema de Tiradentes 2023, o diretor Pedro Diógenes, de “Inferninho“, explora o drama familiar sob o prisma do amadurecimento e da novidade. O pai Renato (Démick Lopes) deve começar de onde parou com sua filha Joana (Lis Sutter). Assim, é desafiador reavivar um vínculo esporádico de visitas em festas de fim de ano e de poucas vivências em conjunto.
A química entre os atores, no trecho inicial, é quase inexistente. De qualquer forma, a dificuldade que pai e filha encontram para estabelecer um diálogo, ou mesmo parecerem confortáveis na presença do outro, é totalmente condizente com a ausência paterna na vida de Joana. A personagem, de fato, não conhece o próprio pai. O estranhamento do relacionamento deles é realçado pela profissão de Renato. Incorporando a personagem drag queen Silvanelly, o pai faz performances de comédia em bares, restaurantes e casas de show. Ainda há um aspecto simbólico no fato de ele se montar. O término do casamento e posterior abandono parental foi desencadeado em razão de uma paixão avassaladora entre Renato e outro homem. Dessa forma, a feminilidade da personagem (maquiagem exagerada, perucas e roupas) expõe a sexualidade de seu pai, a qual foi determinante para a distância entre eles e representa para a filha o signo do abandono.
É notável como a conturbada relação, primeiramente mais implícita do que explicada, tende a encontrar abertura por meio do convívio. O desenvolvimento gradual de “A Filha do Palhaço” é um dos grandes méritos da condução de Diógenes. Se inicialmente os dois não se entendem, depois cada um se esforça para compreender melhor o outro. O pai arranja uma televisão, tenta diminuir o conflito tecnológico-geracional. A filha, por outro lado, entende melhor Renato no meio do silêncio e da solidão. Ao entrar em um dos quartos da casa, ela vê fotos do pai e seus adereços para se tornar Silvanelly. Após esses momentos, ambos se dão melhor e a tão almejada química é alcançada. O cotidiano é valorizado e os pequenos gestos aproximam ainda mais os personagens e o próprio público, em si. Quando Lis lamenta não ter um pai “normal” (ator, drag, LGBTQIA+), na realidade, Renato demonstra ser “tão careta quanto os demais”, como ela observa em outro momento. No final das contas, ele está em busca da reconciliação, do reestabelecimento desse vínculo pós-abandono.
O cineasta opta, também, por uma mise-en-scène bem iluminada para destacar os personagens. A predominância do neon (verde, vermelho e azul) é visível nos palcos, no camarim e até na casa. Junto disso, existe um destaque ao performático-teatral. As apresentações de Silvanelly – que inclusive foi inspirada em Raimundinha, personagem criada pelo primo do diretor, Paulo Diógenes –, a trupe de Marlom (Jesuíta Barbosa) e os números que flertam com o musical demonstram a segurança da direção em transitar entre o realismo frontal do drama familiar e uma abordagem mais estilizada. A música, portanto, é um elemento dramático absolutamente importante da recente união entre pai e filha. O leitmotiv representado por “Tô Fazendo Falta” se torna um hino desse afeto tardio entre os dois, o que consequentemente é emocionante.
A emoção divide espaço na tela com o humor. Entretanto, mesmo com a segurança da direção para se adequar formalmente a cada momento, por vezes isso soa um pouco inconstante. Por exemplo, a estreante Lis Sutter transmite bem a sensação da descoberta da paternidade na relação cotidiana, a cumplicidade quase irresponsável dos dois é cativante, nunca antes um “exposed” foi tão divertido. Em contrapartida, quando exige-se da atriz uma performance mais dramática, ela não parece tão segura. No geral, o saldo ainda é positivo, sobretudo pela interação com o experiente Démick Lopes. O ator consegue com maior facilidade explorar a amplitude dramática de momentos de tensão e de leveza. O que fica de “A Filha do Palhaço” é a beleza da segunda chance para Joana e Renato. Em entrevista ao “Meio Amargo”, Diógenes destaca a importância da filha ter tomado a iniciativa da reconciliação, para o diretor, “parte do processo é desculpar”. E como é bom ter uma eternidade para se arrepender e um tempo para deixar de fazer falta, mesmo que pouco.