A Escada
Stairway to Heaven
Por João Lanari Bo
All media exist to invest our lives with artificial perceptions and arbitrary values
Marshall McLuhan
Nesse alvorecer do século 21, uma tacada provocativa como a citada acima parece apresentar-se como evidência cada vez mais próxima, sem que nunca, entretanto, a alcancemos de fato. As mídias se desdobram e, cada vez mais, investem nossas vidas com percepções artificiais e valores arbitrários. Tudo começou quando o documentarista Jean-Xavier de Lestrade lançou em 2004 “The Staircase”, série documental, que tinha como núcleo temático o julgamento e a prisão de Michael Peterson, romancista e aspirante a político: sua segunda esposa, Kathleen, foi encontrada ensanguentada e morta na parte inferior da escada na casa do casal, em Durham, Carolina do Norte, 2001. As filmagens começaram logo após a acusação – a equipe teve amplo acesso à família do acusado, aos advogados de defesa e às sessões do tribunal. A série foi ar na TV aberta (PBS americana e BBC inglesa) e na TV a cabo (Canal Plus francês). Lestrade voltou a filmar Peterson e sua família a partir de 2011, cobrindo os desenvolvimentos do caso: novos episódios com atualizações foram produzidos para a Netflix que, em 2018, disponibilizou nova série com 13 capítulos – bem-vindos ao streaming!
A prisão foi em 2004: Peterson conseguiu retomar o julgamento em 2011, depois que o depoimento de um perito sobre manchas de sangue revelou-se tendencioso, que levou à anulação de sua condenação inicial. Peterson sempre negou a acusação de assassinato, alegando que a esposa havia caído acidentalmente. Um novo julgamento deveria ocorrer, mas nunca aconteceu: em 2017, ele entrou com a chamada confissão de Alford – que permite ao réu declarar-se culpado e manter sua inocência – pelo homicídio culposo de sua esposa. Graças ao tempo que ficou atrás das grades, pouco menos de 8 anos, ganhou a liberdade. “A Escada”, série que a HBO lançou em maio de 2022, recupera todo esse zigue-zague jurídico e emocional, projetando um docudrama que funde as mazelas particulares dos familiares com as inquietações da equipe que rodou o documentário.
Antonio Campos, que adaptou e dirigiu a série – filho de brasileiros em Nova York, o jornalista Lucas Mendes e a produtora Rose Ganguzza – trata a figura da escada como uma metáfora barroca, que recondiciona a tragédia da família Peterson com o olhar supostamente objetivo do documentário de Lestrade: o resultado é um processo transfigurativo, de tempo e espaço, pelo qual os fatos são transformados, empilhados e elevados à narrativa carregada de ficção. Na ótica de McLuhan, é como se uma nova camada midiática se agregasse a essa saga que parece não ter fim. A nova série não procura respostas: mas faz questão de olhar para todas as possíveis causas da morte de Kathleen, por mais improváveis que sejam – e a mais estranha é que ela foi atacada por uma coruja. Mais precisamente, uma coruja-barrada, cuja dieta consiste de ratos, coelhos, esquilos, raposas, gambás e aves como perdiz e pombas. A coruja caça lançando-se sobre sua presa.
Mas essa vontade agregadora esbarrou, helás, na realidade: logo após a estreia na HBO, Lestrade e Sophie Brunet, uma das editoras da série documental, vieram a público se queixar. Lestrade, que vendeu os direitos da história por pouco mais de 9 mil dólares, incluindo acesso aos arquivos acumulados ao longo dos anos, sentiu-se traído porque foi retratado como um diretor que pede várias tomadas e mais emoção nas cenas, algo incompatível com sua ética de documentarista. Brunet, por seu turno, reclamou que foi descrita como alguém que editou a série para beneficiar Peterson, com quem havia engatado um romance. Lestrade disse também que confiou em Campos a ponto de não pedir para ler o roteiro. O personagem principal, Michael Peterson, não deixou por menos: além de acusar os realizadores de “A Escada” veiculada pela HBO de invenções e distorções flagrantes da verdade, não poupou o diretor da série documental “The Staircase” exibida pela Netflix, que, segundo ele, traiu sua confiança (e de sua família): Jean Lestrade nos enganou – vendeu nossa história para Campos por dinheiro – que palavra além de cafetão descreve o que ele fez?
Nessa altura do campeonato, a metáfora barroca de “A Escada” parece aproximar-se da escada do famoso gravurista Escher, aquela que forma um loop contínuo desafiando a representação bidimensional e a geometria euclidiana. Subimos e descemos, descemos e subimos a escada, infinitamente, tal qual a pobre Kathleen na sua dolorosa e misteriosa morte. Toni Collette faz com brilho o papel de Kathleen, assim como o fazem Colin Firth (Michael) e Juliette Binoche (Sophie Brunet). A performance desse trio vale a maratona.