A Despedida
A essência da liberdade
Por Fabricio Duque
Talvez o maior tabu da humanidade seja mesmo a figura iminente e imutável da morte. Ainda que uma consequência natural da própria vida, o ato misterioso (especialmente por não saber o que acontecerá depois) apavora o mais cético do ser humano pelo não mais existir fisicamente. Assim, quanto maior o medo, melhor a dominação. Escolher morrer não só é um sacrilégio, segundo a Igreja Católica e outras religiões, como um crime social. O corpo tornou-se propriedade legal do Estado (em alguns permitidos, outros terminantemente proibidos). Um dever compartilhado e não mais um direito. É por isso que “A Despedida”, do realizador Roger Michell (de “Um Lugar Chamado Notting Hill”) pode ser considerado um filme-transgressão. Uma revolução à favor do livre-arbítrio.
Obras cinematográficas sobre eutanásia não são novidades (“A Festa de Despedida”, de Tal Granit e Sharon Maymon; “A Última Lição”, de Pascale Pouzadoux; “Amor”, de Michael Haneke; “Você Não Conhece Jack”, de Barry Levinson; “Mar Adentro”, de Alejandro Amenábar; “Mel”, de Valeria Golino; entre tantos outros). Mas para o mundo atual em que vivemos esse desejo de “encurtar” a existência, mesmo para evitar sofrimentos, simboliza um atentado à “felicidade”, uma obrigação, quase prisão, que os indivíduos devem seguir à risca. Tristeza, melancolia, tédio e até mesmo o pensamento questionador precisam ser constantemente domados e aniquilados com medicamentos que “devolvem” a alegria. Viver entre máquinas e alimentar os lucros dos hospitais representa a “normalidade”.
“A Despedida” é sobre humanizar e naturalizar a reação de familiares e de amigos perante a pessoa doente, inicialmente vista como “incapaz”. O roteiro de Christian Torpe, baseado em sua história-argumento original “Coração Silenciado”, quer romper a sensibilidade do desconforto gerado pelo humor sarcástico, tom espirituoso e verdade não infantilizada. Ainda que o moralismo norteamericano esteja ali nas entrelinhas (forçando muitas vezes a memória afetiva e a teatralização interpretativa, artifício este para suavizar o tema), o fato do diretor ser da África do Sul impõe uma liberdade não conservadora (com um toque de cinema francês) a mais para confrontar os porquês dos limites entre o querer e o poder. Por exemplo, o remédio “poção mágica” pode ser comprado pelo Google, a um clique de distância e com entrega garantida.
É um filme sobre entender e aceitar a morte. Sobre mitigar o medo da finitude existencial com sinceridade para rir da própria desgraça, como trocar o Dia de Ação de Graças (um feriado “sem graça”) pelo Natal antecipado. Em determinados momentos, “A Despedida” nos alfineta com contras, a fim de colocar mais lenha na fogueira de nossas percepções já bagunçadas. Sugerindo por exemplo que a personagem principal (a atriz Susan Sarandon) é “articulada, analítica e controladora demais” e sua decisão de “acabar com a vida antes de sofrer” pode soar egoísta e individualista. Alguns perguntarão: e a família? Ela não se importa? Taí uma questão ainda mais egocêntrica. Quem tem o controle da própria vida senão a própria pessoa que a vive? Fazer com que um ente querida sofra para não “perdê-la” e porque “não está pronta para deixá-la ir soa até como um cruel sadismo mimado. Este pode até ser o Minority Report do suicídio, por supor que a doença se manifestará logo e rapidamente. O próprio filme deixa claro: tudo ali é uma suposição médica.
Contudo, mesmo com o tema espinhoso e polêmico, “A Despedida” decide seguir as regras da boa e velha Hollywood ao conduzir o espectador pelo “morde e assopra”. As situações do drama intimista apelam a um civilizado final feliz e maduramente aceito. Os conflitos, surtos, roupa suja lavada, segredos expostos, moralismos contra o “ato doentio”, a câmera na mão para de uma vez por todos tentar capturar a organicidade da ação, tudo está ali nas festas de família, à moda de um Dogma 95 (só que muito mais voltado aos americanos), e a resolução das reviravoltas buscam caminhar pela redenção do último querer. O título original “Blackbird”, pássaro negro na tradução literal, não faz alusão à música dos The Beatles, e sim uma metáfora “aos parâmetros encontrados em humanos”.
A Despedida”, por mais que se prenda nas convenções esperadas, consegue dar o primeiro passo revolucionário para que possamos olhar a morte como uma consequência natural. Sem culpas religiosas. Sem crimes decretados pelo Governo. Sem sentimentalismos baratos. E sem crueldades egoístas. É um filme sobre o resgate da liberdade de permitir que o ser humano seja pleno em suas escolhas. Sem influências e imposições externas. Um pequeno passo para a Humanidade.