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A Conferência

Solução Final

Por João Lanari Bo

Durante o Festival do Rio 2022

A Conferência

Então, pela primeira vez, percebemos que nossa língua carece de palavras para expressar essa ofensa, a demolição de um homem… Tínhamos chegado ao fundo. Não é possível afundar mais do que isso… Nada mais nos pertence: tiraram nossas roupas, nossos sapatos, até nosso cabelo… Vão tirar até nosso nome (Primo Levi)

Numa época em que alucinados e aloprados falam em 3ª Guerra Mundial, como desdobramento da guerra na Ucrânia que se arrasta impiedosamente, em pleno século 21 – torna-se pertinente revisitar alguns dos momentos paroxísticos da guerra anterior, a segunda. Paroxística: adjetivo que os dicionários definem como tipo de convulsão ou espasmo agudo, com dor intensa, próprio da intensificação repentina dos sintomas de uma doença. A convulsão, claro, é metafórica: no caso de “A Conferência”, telefilme alemão de 2022, ela é o discurso mesmo da narrativa fílmica. Assistimos à encenação fria e objetiva da reunião que deu a largada, no âmbito da burocracia nazista, da famigerada solução final do problema judeu, um massacre industrializado que liquidou milhões de mulheres, homens e crianças. Em 20 de janeiro de 1942, quinze funcionários do alto escalão da administração alemã reuniram-se numa aprazível mansão a beira do lago Wannsee, subúrbio de Berlim – popular local de recreação, inclusive com área de nudismo. A mansão, de estilo eclético, foi construída em 1914 sob a batuta de Paul Baumgarten, um dos arquitetos favoritos de Hitler: em 1941 o proprietário e industrial conservador, Friedrich Minoux, vendeu-a para a SS – a temível Schutzstaffel ou “Tropa de Proteção”, organização paramilitar ligada ao Partido Nazista.

Àquela altura a guerra entrava num ciclo mortífero e arriscado: em junho de 1941, Hitler deu a ordem para a invasão da URSS, cujos objetivos eram a aquisição do “espaço vital” (Lebensraum) para a raça germânica e a destruição do comunismo. Nas primeiras semanas da invasão, os assassinatos, sobretudo de mulheres e crianças judias, foram esporádicos, embora constantes: em meados de agosto a matança ampliou-se, apesar da resistência de alguns soldados, horrorizados com a crueldade gratuita. Como resultado da visita de Hitler ao front e sua conclusão de que a solução territorial para o problema judaico era impraticável, a alternativa seria pensar em projetos mais sistemáticos, que contemplassem assassinatos em massa de judeus. No final de 1941 o duro e demolidor inverno russo entrou em cena para alterar inapelavelmente os rumos da guerra. Para os espíritos aguçados, os sinais no horizonte eram cada vez mais claros: depois da euforia inicial dos avanços da invasão, a possibilidade de derrota do exército alemão começava a afigurar-se plausível, a médio e longo prazo.

Reinhard Heydrich, conhecido pela alcunha de carrasco de Hitler – inventada pelo maior escritor alemão do século 20, Thomas Mann – foi o organizador da reunião. Sua caracterização em “A Conferência” sugere o perfil de um burocrata eficiente, implacável e protegido pelos poderosos: com efeito, a dinâmica política na Alemanha nazista orientava-se por favoritismos, que de alguma maneira chegavam até o big boss. Heydrich, que era um exímio violinista, ingressou em 1931 na SS: em pouco tempo tornou-se o quadro mais próximo de seu comandante, Himmler, que por sua vez era um dos nazistas mais próximos a Hitler.  No poder, Himmler e Heydrich iniciaram uma sistemática perseguição a tudo o que fosse hostil à ideologia nazista, de comunistas e ativistas antinazistas a supostos desvios da eugenia racial idealizada por Hitler e colaboradores. Os judeus eram um dos alvos mais visíveis, senão o mais visível, como se sabe, de ações terroristas de intimidação e políticas de deportação. Deportar os judeus da Alemanha e países anexados – Áustria, República Tcheca, logo Polônia – foi objeto de um enorme esforço político e logístico do qual Heydrich foi um dos principais articuladores. Possibilidades que hoje soam delirantes – deportar 4 a 5 milhões de pessoas para Madagascar e criar um “cordão sanitário” em torno da ilha – foram seriamente consideradas.

Todos esses absurdos foram objeto de debate no encontro da mansão Wannsee. Cada um dos debatedores apresenta suas dúvidas e propostas a respeito do “problema”, sempre fria e racionalmente, defendendo como podem interesses específicos dos respectivos órgãos de origem. O mérito maior da direção do filme foi ajustar a performance dos atores à personalidade dos participantes, da culpa dissimulada que alguns exibiam diante de tanta crueldade ao cinismo dissoluto com que o grupo terminou acatando o plano de Heydrich e Himmler – estabelecer uma rede de campos de extermínio com câmaras de gás. Adolf Eichmann, representante da banalização do mal, como sugere o famoso relato de Hanna Arendt, foi o gerente do evento – e veio a alcançar fama mundial em 1960, quando foi capturado na Argentina e levado a Israel, onde foi julgado e executado. A reunião de 1942 durou 90 minutos: milagrosamente, a ata final sobreviveu e foi descoberta em 1947.

Não há nenhum documento, entretanto, que indique por quem, em que momento e de que maneira foi decidido o extermínio industrial dos judeus, a solução final. Muitos estudiosos acreditam que tal ordem nunca foi emitida por escrito: em vez disso, teria sido dada oralmente, por Hitler, ou com seu conhecimento, no verão de 1941. “A Conferência”, exibida no Festival do Rio 2022, é uma fotografia do instante em que a decisão começou a ser implementada burocraticamente. Embutida nessa decisão talvez pairasse o temor, consciente ou não, de que a guerra caminhasse para um desfecho trágico, sobretudo para os alemães. Organizar a morte industrial da comunidade judaica era uma forma de acelerar esse processo.

3 Nota do Crítico 5 1

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