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A Casa

A Perversão na Abundância

Por Daniel Guimarães

A Casa

Cinema e psicanálise está entre minhas matérias favoritas que estudei na faculdade. Nela, as estruturas psíquicas (Neurose, Perversão e Psicose) eram exemplificadas através de personagens no cinema. Me peguei na necessidade, após assistir a “A Casa”, novo longa-metragem da Netflix, de enviar um e-mail para a professora com a sugestão de inseri-lo na lista de filmes que abordam a perversão.

No filme, dirigido por Àlex e David Pastor, Javier (Javier Gutiérrez) é um publicitário de classe média alta que perde seu emprego e, consequentemente, sua vida abundante. Ao não conseguir trabalho novamente, é forçado a largar seu excelente apartamento em Barcelona. Quando uma nova família o assume, o protagonista se torna obcecado por eles, o que o faz se aproximar de forma cada vez mais bizarra dos novos inquilinos. Utilizando da psicanálise como ponto de partida, Javier é um interessante personagem para análise enquanto perverso. Enquanto se encontra em sua posição fálica, isto é, posição de poder e domínio, vive tranquilamente em sociedade. É a figura do pai provedor, em uma família que possui um apartamento luxuoso, carros caros, escola privilegiada, doméstica e todas as outras regalias da classe média alta.

Nesse lugar, está em um estado de prazer, sem seu domínio questionado. Até o momento em que essa configuração se desfaz e sua posição não é mais a mesma, tendo que passar por situações das quais não possui o controle e o prazer absoluto, as considerando “humilhantes”, como se mudar de seu apartamento luxuoso para outro em área mais simples ou ter sua esposa trabalhando. Situações nada catastróficas, exceto para o protagonista. Naturalmente, a partir disso, se torna obcecado por Tomás (Mario Casas) que, vivendo em seu antigo apartamento como “provedor”, automaticamente assume (ou, para Javier, rouba) seu lugar fálico. E, nisso, cada minúcia da família se tornará objeto de comparação, enquanto Javier olha, supostamente, de baixo para cima. Até mesmo seu próprio filho, acima do peso, se torna inaceitável frente a filha atleta da nova família. Entretanto, é característica do perverso achar suas fraquezas e culpas, para explorá-las em seu favor. É nisso que reside o sombrio e o suspense da narrativa.

Os conceitos são acompanhados cinematograficamente em “A Casa”, criando uma interessante estética. Javier é extremamente metódico, calculista e manipulador. Com isso, o design de produção torna as casas e ambientes de classe média alta em completamente limpos, organizados e disciplinados. Todos de arquitetura agradável e, de certa forma, minimalista. Não só uma visão sobre o personagem mas também um comentário ao sistema econômico e suas classes. A fotografia segue o estilo e transforma também a câmera em minuciosa e detalhista, com articulados planos e poucos movimentos e. Os quadros, por vezes, exaltam justamente essa arquitetura de ambientes e, em outros momentos, traz a perspectiva do olhar de Javier. Tratando-se de um acompanhamento da mente e das atitudes de um perverso, o uso do foco está sempre bem inserido para localizar qual o alvo do protagonista. Algo horrendo pode estar ocorrendo em sua frente, entretanto, seu foco não é jamais perdido, bloqueando os arredores, tornando a profundidade reduzida.

A direção nesse sentido é exemplar, pois na condução desses fatores cria clima e atmosfera ideais para reproduzir a narrativa que reflete sobre os estímulos que são exaltados por uma sociedade doente. Não atoa sua própria profissão, a publicidade, é um símbolo desse mundo dos exageros. “A Casa”, no entanto, mesmo possuindo conceitos teóricos e técnicos interessantes, desliza em sua estrutura, acentuado no terceiro ato. Se contendo no metódico nas duas primeiras partes, o desfecho parece querer exaltar nosso absurdo social e tenta se tornar catártico pelo exagero. Entretanto, mesmo compreendendo a intenção, enquanto narrativa não se sustenta completamente no megalomaníaco de Javier.

Porém, a mais grave falha de “A Casa” se encontra nas figuras femininas. Como forma de criar cenas que demonstrem o domínio e a manipulação de Javier, o filme escolhe pôr personagens mulheres somente em posições reativas, no lugar de simples alienadas que são manipuladas facilmente por Javier, sem nunca possuir força em tela. Pelo contrário, somente aparecem vulneráveis. Apesar de, nesse caso, considerar a linha do absurdismo insatisfatório como forma de crítica sistêmica, há algum espaço para argumentos e defesas. Porém, em relações e representações humanas, deve-se ter cuidado com que valores e figuras está inserindo em uma narrativa tão forte como a do cinema, mesmo que trabalhando em exageros.

3 Nota do Crítico 5 1

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