A Caçada
A lebre, a tartaruga e o porco
Por Fabricio Duque
Uma das maravilhas da vida é ser surpreendido com experiências que fogem do comum padronizado. A tendência de todo e qualquer ser humano é a de se acostumar com as situações receptores, quase como uma zona de conforto que processa na retroalimentação circular das mesmas sinapses. “A Caçada” (2020), indicado a Melhor Filme na edição inaugural do Critics’Choice Super Awards 2021, apresenta-se fora da curva. Dirigido por Craig Zobel (de “Obediência”, “Os Últimos na Terra”, além de um episódio de “Westworld”), roteirizado por Nick Cuse (do seriado “The Leftovers”) e Damon Lindelof (de “Lost”, “Guerra Mundial Z”), o longa-metragem transporta seu público por uma crítica ao sistema (com foco nos Estados Unidos, mas também trazendo reverberações geográficas), estrutural, hipócrita e em colapso social.
“A Caçada” é uma metáfora política. Uma analogia do comportamento moderno. Uma parábola de reconstituição: da tartaruga, da lebre e do porco, cuja trilogia encontra amparo e embasamento na “Revolução dos Bichos”, de George Orwell. A crítica aqui empregada com perspicácia, inteligência e com sutil humor negro-espirituoso expõe as rachaduras de um mundo em “adaptação” aos novos “rótulos” e definições, como “negro agora é afrodescendente”. O roteiro pulula alfinetadas estereotipadas e ofensas preconceituosas para desmantelar de uma vez por todas nossas “amarras” morais. De se “enquadrar” na sociedade. De se estar livre de qualquer possibilidade de “cancelamento”, palavra-mantra do momento para excluir todos e/ou todas de possíveis pensamentos impuros sobre gênero, raça, identidade sexual e imigrantes.
Em uma das cenas, talvez a mais explícita, não só por sua violência de visual visceral, à moda de Quentin Tarantino e seu “Pulp Fiction”, tampouco pela narrativa que nos conduz pela agilidade das reações, mas especialmente por gerar o incômodo ao questionar que se é um direito constitucional todos terem uma arma para proteção, então o outro lado que caça também está certo em atirar com armamentos de fogo. E ou quando a “vilã” duvida das “ordens”: “Mas ele está com uma aliança de casamento. Será que é má pessoa?” (mais uma vez, lidado pelo filme com crítica, o gatilho da culpa e/ou uma pausa no transe assassino está no conservadorismo e os valores familiares). E a contrapartida do marido não poderia ser mais hipotética “Ele deve ter usado a palavra preto no Twitter”, começando logo em seguida a discursar sobre a escravidão e “daquelas pessoas” (que por sua vez é repreendido pela esposa com a expressão ofensiva). Eles consideram-se justiceiros “perdidos” na prisão dos rótulos.
Os espectadores recebem um discurso ante o círculo de ódio contra tudo que é diferente e não de supremacia branca. “A Caçada” é literalmente um filme contra a política de Donald Trump e sua influência gangrenada aos “apoiadores”, Vikings de uma Nova Era para fazer a “América grande de novo”. Se observamos as referências, então, inevitavelmente, pensaremos nos seriados animados “A Casa Animada” e “South Park” e no faroeste “Westworld”, mas principalmente nas sagas “Jogos Vorazes” e “jogos Mortais”. Só que neste se julga as vontades excêntricas dos ricos perante, que organizam uma caçada por vingança sem permissão para liberdade de expressão pelo sensorial da narrativa, rítmica, cadenciada e de tensão iminente. E é aí que nós somos surpreendidos pela “naturalidade” da mortandade de possíveis protagonistas, não poupando ninguém e sem misericórdia.
“A Caçada” também se articula pela quebra de paradigmas entre homens e mulheres. A personagem (uma mistura de “Killing Eve” com “Kill Bill”) Crystal Creasey (interpretado pela atriz Betty Gilpin, da série “Glow”), que se torna principal, é feminina-idealista-patriota-articulada, sobrevive por acreditar em não desistir nunca e ainda rebate quem realmente é a “Bola de Neve” e quem é o “deplorável”. E a não “levar desaforos para casa”. Sim, é a eterna lei de Darwin. O mais forte fica e desfruta do “caviar” e “champanhe”. Infelizmente, esta obra vem fazer coro com outros filmes, como “Skin – À Flor da Pele” e outros seriados, como “Hunters”. Eis que nos perguntamos o porquê de tanta necessidade de retrocesso e de inverter consciências primitivas já domadas. Diversão? Puro sadismo? Psicopatia cognitiva? Genes do mal? Em um estudo britânico, foi comprovado que o ódio está no mesmo campo cerebral do amor. Será então paixão demais pelo ser humano? Ou pela existência individualizada? As perguntas retóricas também nem ajudem, mas tentar é o único que podemos fazer. “A Caçada” é exatamente assim. Um filme de ação inteligente que foge da caracterização típica de seu gênero. E que aprofunda com o próprio “veneno” injetado na mente de um povo em colisão auto-destrutiva. “-Então, é bom? -Pra c#c@t&”.