A Baleia
As pessoas são incríveis
Por Pedro Sales
Festival de Veneza 2022
Com a webcam desligada, um professor ensina alunos como escrever um bom ensaio. A imagem que os estudantes possuem de Charlie (Brendan Fraser) é apenas um quadrado preto na tela, uma voz sem rosto. Para a filha Ellie (Sadie Sink), o pai é uma memória, afinal ela nunca se esquece de nada. A direção de Darren Aronofsky, diretor de “O Lutador” (2009), propõe com uma frontalidade pungente a rotina monótona e quase torturante do protagonista. Dessa forma, para muitos pode parecer que o que o cineasta faz em “A Baleia” seja um simples exercício sádico, um desrespeito às pessoas obesas ou um melodrama barato. Para mim, não é nada disso. Apesar de conseguir entender vários argumentos que contribuem para essas diferentes visões, Aronofsky busca (ou tenta) refletir sobre humanidade.
O cineasta possui em sua filmografia um histórico de obras que causam o desconforto. Em “Réquiem para um Sonho” (2000), longa que projetou sua carreira, o diretor dosou o choque no conteúdo e na forma. No primeiro caso, pela temática de dependência química e degradação moral. Já no segundo, por meio da fragmentação da montagem, em uma técnica que ficou conhecida como hip hop montage. O último filme, “Mãe!” (2017), por meio do fluxo e descontrole, convida o espectador ao sentimento de ansiedade a todo momento. Em “A Baleia“, por sua vez, a grande sensação enervante causada por Aronofsky é a claustrofobia. O formato de tela (ou razão de aspecto) é um 4:3 que comprime ainda mais o personagem em sua reclusão. Junto disso, o sentimento é reforçado constantemente pela unicidade cênica. O filme se passa em um só cenário, a casa de Charlie, em certos momentos isso remete até mesmo à teatralidade.
A obra-base do longa é a peça homônima escrita por Samuel D. Hunter, o qual assina o roteiro. Assim, é perceptível a dificuldade de Aronofsky em se desprender de aspectos teatrais para um uso potente e significativo da linguagem cinematográfica. A obra, portanto, sofre com a transposição de mídias. A câmera quase sempre se repousa atrás do sofá onde a vida de Charlie acontece, quando se move são discretas panorâmicas que acompanham o movimento ora da enfermeira Liz (Hong Chau), ora da filha Ellie. Se por um lado o caráter quase teatral e pouco cinematográfico gera, por vezes, a sensação de monotonia e clausura, pelo outro, preserva um aspecto clássico propício para o desenvolvimento melodramático da trama.
Entretanto, o desconforto provocado pelo diretor não se restringe à claustrofobia e ao espaço cênico único. A própria imagem de Charlie busca deixar o público desconfortável. A obesidade mórbida do personagem representa para ele uma vulnerabilidade extrema. Rir pode fazer com que ele sufoque, o ato de comer também. O esforço físico de um orgasmo ou de simplesmente se levantar ocasiona pontadas no coração, aceleram a pressão e o deixam bem próximo de um desfecho fatal. Talvez estes sejam os momentos em que Aronofsky mais pesa a mão e espetaculariza a doença do personagem. Existe uma carga sensacionalista e quase apelativa (a depender do espectador, será totalmente apelativa) na rotina de Charlie. De certa forma, o diretor faz da doença um aspecto monstruoso. O exagero prostético no personagem reforça essa ideia. Além disso, ao filmar em contra-plongée (de baixo para cima) o professor, é um contraste entre o peso de Charlie e a fragilidade da enfermeira. Quando um close do rosto mostra o suor na tentativa de levantar, a direção beira o desrespeitoso, a busca pelo choque através dificuldade motora e física do personagem.
A dicotomia entre imagem-conteúdo surge na personalidade do protagonista. A câmera que o filma como um ser anormal realiza um embate com o texto que comprova o quanto Charlie é incrível. Naturalmente, a obra suscitou debates acerca de desumanização, exploração da dor de milhões de pessoas que compartilham da mesma condição que o personagem, ou do teor apelativo do longa. No entanto, “A Baleia” é um filme sobre a humanidade, no caso, o sentido de benevolência e compaixão perante os demais. Charlie possui todas as razões do mundo para ser um misantropo, porém não o é. Ele é amável, dedicado, culto e esperançoso, apesar das adversidades. Assim, o otimismo divide espaço com a constante busca pela salvação. Um missionário (Ty Simpkins) visita e promete a vida eterna ao professor. Para ele, por outro lado, a salvação não advém do cristianismo, pelo qual ele nutre traumas em relação à perda do companheiro. A salvação de Charlie é humana, é a reconciliação com a filha, um futuro melhor para quem ele ama, mas não esteve presente.
O longa é pautado nas relações pessoais de Charlie, em razão disso, as atuações são parte determinante da obra. Brendan Fraser possui uma performance potente que transita do dócil ao desesperador. A positividade que Fraser emana na performance é cativante e facilmente emociona o espectador (ele pede desculpas sem precisar, fica quase sempre em um estado de passividade diante dos outros), sobretudo em razão da divergência entre sua índole e a crueldade apática adolescente de sua filha, ou da personalidade realista-incisiva da sua enfermeira. O elenco de apoio contribui para tal efeito. Sadie Sink consegue ser cruel e interesseira, causando um distanciamento intencional com o público, e Hong Chau mostra que a franqueza e realismo são para a salvação física de Charlie. Quando a trilha sonora sobe, as performances tendem ao exagero, e o caráter melodramático, já evidente, procura tirar lágrimas do espectador.
“A Baleia” é divisivo porque se contradiz. O sensacionalismo de Aronofsky que degrada a imagem de Charlie (o banquete autodestrutivo e as indigestas cenas da compulsão alimentar) contrasta com os dramas e a humanização do personagem. É perceptível o quanto ele é diferente dos demais, bondoso e preocupado (até mesmo com as menores formas de vida). Logo, a performance de Brendan Fraser também se destaca, até quem desgostou do filme aprecia o excelente trabalho do ator, o qual garantiu a ele sua primeira indicação ao Oscar. Mesmo com problemas no tratamento do personagem, como o exagero que pende ao desrespeitoso, quando se analisa o macro, a obra consegue dar mais destaque ao aspecto humano de superação e redenção de Charlie. A salvação surge com uma luz divina ao fundo, o texto de Moby Dick lido quase como um mantra é colocado em foco e seu peso emocional é revelado, e os passos permitem o verdadeiro encontro entre pai e filha.