A 2000 metros de Andriivka
Mexa-se, Putin!
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2025
“A 2000 metros de Andriivka” – o título mesmo define o espaço dramático do que se passa na tela, dois mil metros que separam o batalhão ucraniano do vilarejo Andriivka, no Oblast de Donetsk, leste da Ucrânia. Não é muita coisa: a pé, alguns minutos; um morteiro pode atravessar a distância em pouco mais de 30 segundos. Numa guerra de trincheiras, sobrevoada por drones e com soldados armados até os dentes, a travessia pode ser muito mais lenta. E mortífera: a percepção de imediaticidade que emana desse testemunho ocular – nos créditos, vários combatentes são listados como câmeras das cenas de batalha – é visceral e nauseante, no limite do torpor.
Câmeras adaptadas no capacete, que dão a sensação de olhos que se movem num piscar de olhos, denotam uma pulsação a um só tempo cardíaca e escópica. Com uma agravante: ao reproduzir o ponto de vista em primeira pessoa do atirador, como nos videogames, a imagem reforça uma identificação subjetiva entre espectador e atirador, incluindo trepidação do quadro e o consequente entorpecimento de quem assiste tudo isso no produto final. É um mérito da edição combinar esse frenesi de captação com momentos de estabilidade, entrevistas tomadas no subsolo das trincheiras, e sequências de funerais de militares caídos nesse particular combate. Cada milímetro de avanço ucraniano, entretanto, é inevitavelmente penoso – pelas vidas que se perdem, pela absurdidade que emerge desse espaço desolado.
Estamos em setembro de 2023, quando Chernov junta-se à 3ª Brigada de Assalto e parte para o front, para registrar um fragmento de batalha no âmbito da contraofensiva ucraniana perto de Bakhmut, onde Andriivka tem importância estratégica. “A 2000 metros de Andriivka” acompanha a missão da brigada: levar a bandeira azul-amarela da Ucrânia a um sargento, Fedya, que a hasteará no vilarejo a fim de marcar a conquista do território. A via de acesso é uma estreita faixa de floresta arrasada por granadas, drones suicidas e bombardeios, resumo do que se tornou a outrora fértil paisagem da região. O acesso, em linha reta, é de apenas dois mil metros – imagens de drones fornecem o bird-eye desse pequeno atalho, cercado de campos vazios e áridos.
A guerra: soldados rastejando para se manter fora da visão das balas, tiros e palavrões, inimigos em geral enfiados numa toca de tatu. Chernov concentra diálogos com alguns desses soldados, que narram suas motivações e expectativas – por óbvio, o sentimento de defesa da pátria diante do invasor é dominante. Pela narração, somos informados que dos quatro brigadistas com quem ele se encontrou inicialmente para ver as imagens gravadas em seus capacetes, apenas um permanece vivo. Os funerais – tal como registrados em “A Invasão”, de Sergei Loznitsa – envolvem a comunidade onde residia o soldado, muitas vezes não longe do campo de batalha.
“A 2000 metros de Andriivka” aponta para um microcosmo da guerra da Ucrânia, a partir da invasão da Rússia em fevereiro de 2022. O documentário de Chernov é um filme exaustivo, que não capta toda a extensão do traumático cotidiano da guerra, mas logra expor uma pequena parte dele e é um triunfo da realização cinematográfica. Nessa guerra injustificável e fratricida – por tudo o que Ucrânia e Rússia têm em comum – seriam entre 46 e 70 mil soldados ucranianos e entre 90 e 100 mil russos que teriam morrido, sem contar os civis, com número bem mais elevado do lado ucraniano. Esses números podem ser maiores – provavelmente jamais se saberá com razoável acurácia o alcance da tragédia.
O dado novo, disruptivo e imprevisível, é a ascensão de Trump na presidência dos EUA e a (presumida) aproximação com o Kremlin. Observadores apressados alardearam uma “vitória russa” prestes a ocorrer – algo de difícil previsão, para dizer o mínimo. No momento em que essa resenha é escrita, Trump publicou nas redes “mexa-se, Putin”, explicitando, à sua (tosca) maneira, os impasses vigentes no conflito. O cérebro do mandatário na Casa Branca imaginava um deal rápido para dividir a Ucrânia e terminar a guerra, mas as dificuldades são incontornáveis.
Parece recorrente na expectativa de triunfo de Moscou a ideia (equivocada) de que a invasão da Ucrânia seria parte de uma luta ideológica contra o imperialismo “atlantista”, revivendo a Guerra Fria – quando o cenário é o de um país de tradição expansionista tentando assegurar domínio sobre seu entorno. O desejo de Putin é uma Ucrânia vassala, como a Belarus, permitindo controle econômico e político. Putin, a propósito, lidera um país onde se registram altas taxas de concentração de renda (20% dos mais ricos ganham seis vezes mais do que os 20% menos favorecidos) – autocracia e capitalismo, com o objetivo de garantir a influência regional.
A Rússia moderna sinaliza, enfim, um retorno ao czarismo pré-comunismo, liquidando sete décadas e pouco de políticas igualitárias da antiga União Soviética. Equipada, agora, com arsenal nuclear de alcance global.
Mstyslav Chernov – que estreou como diretor em “20 dias em Mariupol”, de 2023 – é seco e direto sobre seu filme: não se trata de uma moeda de troca política, mas sim de pessoas reais. E é isso que precisamos ter em mente: que essas são pessoas reais. Não se trata de números nem de distâncias.