20 dias em Mariupol
O cerco das imagens em Mariupol
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2023
“20 dias em Mariupol”, primeiro documentário em longa-metragem do fotógrafo e jornalista Mstyslav Chernov, funciona como capsula de tempo e informação sobre a devastação humanitária que ocorreu – e continua a ocorrer – na Ucrânia, depois da invasão russa em 24 de fevereiro de 2022. O rastilho de pólvora que liga esse conflito, que parece perdurar indefinidamente, com o que se passa atualmente na Faixa de Gaza, é assustador: uma lógica de guerra, que se reproduz sem controle ou freios, e que se alastra com rapidez. Um rastilho que passa pela cobertura midiática online e pela repercussão nas redes sociais – gerando a (falsa) impressão da proximidade das guerras, da intimidade voyeurística da violência.
Chernov e seus colegas da Associated Press, o fotógrafo Evgeniy Maloletka e a produtora Vasilisa Stepanenko, perceberam que o porto de Mariupol, a menos de 50 quilômetros da fronteira com a Rússia, seria objetivo prioritário das tropas de Putin logo no início da guerra. No dia 25 de fevereiro, mísseis caíram em todo o país, inclusive em Mariupol – Chernov e equipe foram dos poucos que permaneceram no local. Começa o diário de filmagens, narrados em voz off pelo diretor: civis desnorteados pelo choque das bombas, uma idosa histérica perambula numa área remota – ela reaparece mais tarde, viva, mas sua casa foi destruída. A lei marcial é imposta e muitos optam por evacuar enquanto ainda é possível: poucos abrigos antiaéreos estão disponíveis, as pessoas amontoam-se em porões e mísseis devastam não apenas infraestruturas e postos militares, mas também objetivos civis. Eletricidade, telefone e acesso à Internet são cortados. Centenas de vítimas lotam os hospitais, já atingidos pelas bombas – e cadáveres começam a aparecer nas ruas, à espera de uma vala comum.
O que move o olhar de Chernov nessa espiral de morte é o desejo de reportar, para além do jornalismo: é uma pulsão de denúncia, referendada o tempo todo por médicos, bombeiros e vítimas. Não é a primeira vez que esse tipo de jornalismo se destaca, reportando de zonas de conflito e captando relatos vívidos e angustiantes. Nós, a audiência que consome avidamente essas imagens, vivemos o implacável ciclo efêmero das notícias, anestesiados pelo fetichismo recorrente das edições televisivas. Aqui, a novidade de “20 dias em Mariupol”: o ciclo do consumo é quebrado, a permanência do produto documental permite – e, no caso, estimula – a reflexão, a vivência das imagens.
Isso é doloroso de assistir. Mas tem de ser doloroso de assistir, diz Chernov, deparando-se com o vírus sádico de destruição, o qual, a essa altura, esvazia a cidade. Sua angústia particular é fazer o upload das imagens, sair do cerco cibernético imposto pelo rolo compressor militar. Chernov diz que filmou 30 horas em Mariupol, mas só conseguiu compartilhar 30 minutos de vídeo com seus editores – como enviar arquivos pesados, como acessar o WeTransfer para gigabytes de MP4 no meio de uma guerra? Uma mulher grávida é filmada em uma maca após o ataque russo à maternidade de Mariupol: Seus ferimentos eram incompatíveis com a vida; fizemos tudo o que podíamos, uma criança morta foi extraída, disse um médico. A mãe, segundo Chernov, sabia que a criança estava morte, e implorou: Matem-me! A imagem circulou pelo mundo, e no dia seguinte o Kremlin negou que tivesse visado alvos civis. Sergey Lavrov, o Ministro de Putin que pratica um discurso cínico e cruel digno dos tempos stalinistas, disse que aquilo era montagem e portanto terrorismo de informação. O tiro saiu pela culatra: ao contextualizar a imagem, gravada imediatamente após o ataque, “20 dias em Mariupol” desconstrói e flagra a artimanha russa.
O cerco a Mariupol durou quase três meses – exatos 86 dias, quando a Ucrânia admitiu, em 17 de maio, ser impossível a retomada da cidade. A extensão do cerco deve-se sobretudo à resistência de soldados e civis entrincheirados na imensa siderúrgica Azovstal, construída na era soviética. Em abril, a estimativa era de que 95% das edificações da cidade já haviam sido total ou parcialmente destruídas pelos combates e bombardeios. A contagem das vítimas ainda é nebulosa – seria 25 mil civis mortos e 10 mil soldados, de ambos os lados, abatidos. Da população original, 425 mil pessoas, pouco mais de um quarto permanece na cidade: muitos fugiram para outras áreas na Ucrânia, outros tantos foram deportados para a Rússia.
Mstyslav Chernov usou uma Sony Alpha 7 e uma lente simples para filmar. Não havia tempo para trocar de lente: zoom era a solução. O micro para captar o som também era o básico, mono, claro. A pós-produção do filme melhorou muita coisa, mas sem sons editados ou artificiais, explosões por exemplo. Eu filmo, tenho que editar a matéria e enviar, quando os editores recebem já tem uma matéria quase pronta.
“20 dias em Mariupol” não dramatiza a tensão que emana da guerra, apenas registra, como se o real fosse uma pulsão de desespero. A rejeição generalizada das reportagens de Chernov pelo Kremlin é a legitimação final do documentário.