11 de setembro: No gabinete de Crise do Presidente
A liderança dos beócios
Por João Lanari Bo
Meio escondido nos porões do streaming, o documentário “11 de setembro: No gabinete de Crise do Presidente”, foi dirigido por Adam Wishart e finalizado em 2021 – vinte anos depois do “fantasmagórico” evento, como definiu um crítico do portal português Cinemametropolis. A ideia foi reconstruir os acontecimentos do ponto de vista do Presidente, George W. Bush, e seu entorno imediato, antes e imediatamente depois do ataque. Com edição ágil e envolvente, material de arquivo muitas vezes inédito e depoimentos fartos de funcionários, inclusive o próprio Bush, o filme termina configurando um resultado surpreendente, uma (quase) celebração patriótica da resiliência norte-americana diante de um fato absurdo e sem precedentes na História.
Certamente não era o objetivo dos realizadores investigar os antecedentes que levaram Osama Bin-Laden e acólitos a planejar a operação, muito menos examinar os desdobramentos que impactaram o mundo no day after, começando pela reeleição de Bush e as guerras do Afeganistão e Iraque. O que se extrai de “11 de setembro: No gabinete de Crise do Presidente” é um conjunto de racionalizações burocráticas que tentam entender e justificar o estado de perplexidade que atingiu a cúpula do país naquele dia – como, num passe de mágica, foi demolido o sofisticado sistema de segurança que todos usufruíam naquele belo dia de sol e temperatura amena. Para arrematar, não custa lembrar que esta pode sido a última vez que funcionários do governo no centro da tragédia tenham vindo a público para falar do assunto.
Espectadores também perplexos com essa “celebração” podem conferir na série de Brian Knappenberger, “Ponto de virada: 9/11 e a Guerra ao Terror”, de 2021, um antídoto razoável para a superficialidade do filme de Adam Wishart. Embora a série de Knappenberger também tenha seus limites – não foi fundo nas contradições que embasaram as decisões de George W. Bush no pós 9/11 – o resultado é infinitamente superior. Nela, o que se depreende é que Bush, auxiliado pelos asseclas Donald Rumsfeld e Dick Cheney, conectados com interesses ligados a petróleo e indústria bélica, foram responsáveis em última análise por desmontar a institucionalidade da vida política nos Estados Unidos. A ascensão de Donald Trump no Partido Republicano pode ser vista como uma das consequências desse desarranjo.
A perplexidade dos funcionários e do Presidente tem brevíssimas alusões à (colossal) falha do ecossistema de segurança dos EUA – CIA, Pentágono, NSA, FBI. Como isso aconteceu? “11 de setembro: No gabinete de Crise do Presidente” evita entrar nas intermináveis teorias conspiratórias que circularam nos anos seguintes, o que é um mérito: mas também evita qualquer menção à incrível negligência desses órgãos, que não foram capazes de decodificar vários sinais de que um grande evento se anunciava no horizonte. Um rápido exemplo: custa crer que os alertas encaminhados ao FBI sobre surtos inesperados de alunos de origem árabe interessados em pilotar jatos comerciais, um deles tendo comentado que “decolar e aterrissar não interessa, quero saber como manter o avião no ar” – não tenha desencadeado ações mais efetivas de prevenção (alguns estavam no ataque de 9/11).
O adjetivo “beócio” tem duas acepções, literal e figurada. A primeira refere-se à Beócia, região da antiga Grécia ao norte e noroeste da Ática grega, ou ao seu natural ou habitante: a segunda, figurada, qualifica alguém de simplório, ingênuo. Bush, se tivesse nascido na Grécia antiga, seria um beócio – é o que se conclui, depois de ouvir suas reflexões no documentário em tela, desde o momento que é informado do avião que bateu no WTC até o pronunciamento à nação no dia 9 de setembro de 2001, passando pelo interminável voo no avião presidencial para escapar de um suposto míssil teleguiado do Al-Qaeda. Sua concepção sobre liderança nacional é pontuada de lugares comuns dignas de um curso por correspondência (seriam banidas por qualquer influencer no Youtube). É inacreditavelmente raso o que ele fala, vindo do “gabinete mais poderoso da Terra”, como gostam de enaltecer os americanos.
Mas, beócio ou não, hoje sabemos que, se alguém ganhou com o ataque coordenado de 11 de setembro de 2001, foi Bush e sua entourage – correligionários, militares, indústria de armamentos, petróleo. George W. se reelegeu com facilidade em 2004, depois de uma vitória discutível sobre Al Gore no ano 2000, no seu primeiro mandato, obtida no “tapetão” da Suprema Corte. Em 2004 o discurso bélico de vingança contra a Al Qaeda foi instrumental para ganhar a eleição, mesmo com o país dividido (muita gente era contra as guerras). Depois do Afeganistão, veio a Guerra do Iraque – baseada numa “arma de destruição de massa” que nunca existiu, ou seja, uma mentira. Aí, bateu no teto: os republicanos perderam a eleição seguinte para Barack Obama.
Chega a ser irônico que Bush tenha condenado publicamente “extremistas violentos no exterior e extremistas violentos em casa”, referindo-se ao assalto ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. No ato, Trump vestiu a carapuça e revidou: “Bush liderou uma presidência fracassada e pouco inspiradora. Ele não deveria estar ensinando a ninguém”. O problema, para a imensa maioria do planeta, que vive na periferia desse “diálogo” – na falta de uma melhor palavra – está em outro lugar: é sobreviver à boçalidade instituída.