Curta Paranagua 2024

Militantes retirantes

Por Pedro Sales

Durante o Festival Olhar de Cinema 2023

A Ditadura Militar (1964-1985) é decerto o período mais nebuloso da história recente do Brasil. Relembrá-la, portanto, é evitar sua repetição, parafraseando a famosa frase. Durante a 12ª edição do Olhar de Cinema, dois longas trataram deste tempo histórico: “A Portas Fechadas” e ““, cuja ideia demorou cerca de vinte anos para chegar às telonas. O diretor Rafael Conde, que também roteiriza a obra ao lado de Anna Flávia Dias, centra a trama na trajetória de José Carlos Novaes da Mata Machado, líder da Ação Popular Marxista Leninista, movimento estudantil que fazia frente ao regime ditatorial que tomava o país. O cineasta, então, promove um discurso político ideológico bem delimitado, contudo não o faz de maneira panfletária. Por meio de uma abordagem realista dos dramas familiares dos militantes, ele propõe um outro lado da luta contra a ditadura. Longe das guerrilhas urbanas e sequestros, aqui buscam um trabalho de base junto à população, mas sempre em fuga.

Zé (Caio Horowicz) é formado em direito, mas antes disso, é um militante. Quando ele é inquirido para ajudar Lena (Eduarda Fernandes), uma companheira que recentemente deu à luz, a luta passa a ser compartilhada pelos dois através do amor que nasce entre eles. Em sua introdução, Conde define a prática do movimento estudantil com distribuição de panfletos e conscientização popular. Este aspecto, no entanto, adquire um caráter mais palpável a partir do momento em que o casal entra de vez na clandestinidade, com nomes falsos, novos documentos e outras vidas. Sem poder nem mesmo informar à família onde estão. Assim, o foco no filme não é ao que eles fazem enquanto militantes. Aliás, incomoda que sejam poucas as cenas que demonstram o trabalho de base, principalmente quando os personagens falam tanto das pessoas e estejam pouco com elas. Apesar disso, há algumas cenas como a “aula sobre a liberdade” – em que o diretor contrasta por meio dos closes o ideal burguês de militância à realidade enfrentada pelos sertanejos -, ou a mobilização de Lena na fábrica, na qual ela, de fato, fala para ninguém, simbolicamente e diegeticamente. Ou seja, a própria ação com o povo é deixada em segundo plano em detrimento de um drama de mudanças, de militantes retirantes.

Em razão do aparato repressivo da ditadura, seus informantes e a perseguição constante àqueles que se opunham ao regime, o trabalho em si também é comprometido. As dificuldades de sobrevivência, por exemplo, mostram-se muito mais urgentes para Zé e Lena. À medida em que a família cresce, mais desafios surgem. Nisso, a direção de Rafael Conde é bastante efetiva. Em “Zé”, o perigo é tangível e onipresente, sendo que a permanência prolongada em um lugar pode acarretar em denúncia quando as suspeitas germinarem. A queda de outros “postos” também exige a mobilização e mesmo o deslocamento para amparar o grupo que parece desbaratado. Tecnicamente existe um claro contraste entre a vida burguesa de Zé em Minas Gerais, na casa dos pais, e o interior nordestino. O design de produção, por exemplo, demonstra uma realidade paupérrima, com dinheiro e colheradas contadas, e a fotografia, iluminada sobretudo por velas, também se apropria formalmente desta conjuntura.

Esse tal perigo antes citado, adquire uma carga ainda maior coma aproximação da ditadura aos protagonistas. Dessa forma, Conde constrói vários momentos de tensões, inspeção policial nos ônibus, espionagem próxima e a perseguição. Para este último, utiliza-se a montagem paralela que interpõe a fuga, mote principal do longa, à esperançosa espera. Junto ao trabalho de direção, destaca-se também as atuações de Horowicz, Fernandes e Samantha Jones, que interpreta Graúninha, personagem agraciada com um excelente monólogo, inclusive. As performances nunca soam exageradas e mantém a dose certa do drama exigido, seja nas discussões políticas do movimento ou nos embates para colocar a família e os filhos em primeiro lugar, abandonando a clandestinidade. Contudo, em alguns momentos pontuais, ela sai do realismo proposto e vai ao artificialismo, como pelo uso do dispositivo brechtiano da quebra da quarta-parede na leitura das cartas. Esse efeito se dá não apenas pelo olhar direcionado à câmera, ao público, mas também ao vocabulário rebuscado de Zé, que foge ao coloquial e diário. Ora, também é natural que a carta seja bem mais formal, porém também causa leve estranheza.

“Zé” é um longa que busca o outro lado da militância. Ao se desvincular dos trabalhos, mobilizações e doutrinações, e impondo um foco narrativo nas mudanças e fugas impostas pela perseguição da ditadura, Rafael Conde exerce um olhar mais humano do tema. Em outro aspecto, essa decisão criativa engrandece ainda mais as atuações, uma vez que o drama adquire um tom familiar, de preservação e sobrevivência. A derrota para os dois parece quase inevitável, de um lado a ditadura se aproxima, com seus tanques, fuzis e helicópteros, do outro a pobreza se prostra como um adversário tão mortal quanto. Embora sejam inúmeras as dificuldades, o discurso proposto pelo cineasta é de resistência, não é por acaso também a recusa em explorar a tortura, evita-se, então, os closes e o choque pelo grafismo. Portanto, o movimento estudantil, a memória dos horrores da ditadura e a trajetória dos militantes em fuga resistem. Na realidade, a própria sobrevivência, neste contexto, também é uma forma de resistir.

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

  • E a traição do irmão da Madalena? A crítica nem toca no assunto! O filme sugere (ou a história?) que talvez Zé estivesse vivo hoje!

    • Sim, Maria. O filme aborda essa trama. No entanto, para resguardar aqueles que não assistiram ao filme, ou mesmo não conhecem a história, optei por não citar diretamente. Mas, ainda sim, falo do “perigo”, da “espionagem próxima”, dos informantes e da inevitabilidade da derrota quando vários postos caem.

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