Zana
O assombro da história
Por Vitor Velloso
Supo Mungam Plus
“Zana” de Antoneta Kastrati é um filme que transa com diversos gêneros, sem se entregar completamente a nenhum. O barato fica entre o suspense e o drama, com um pé no terror e até funciona bem em alguns momentos mas acaba cedendo para fórmulas pouco honestas. A construção é feita a partir do luto e de uma crença mística que se mantém ambígua na maior parte da projeção. A dor da personagem é “materializada” em sonhos vívidos que assombram a paz, a memória da guerra, da carne queimada, do sangue no repouso, dos cadáveres multiplicados, uma depressão histórica sintetizada no drama de uma mulher que perdeu a filha.
Os detalhes dessa perda vão sendo revelados aos poucos, de maneira cada vez mais explícita. Aqui, a lógica de Kastrafi segue o rigor do objeto centralizador de um Mike Flanagan. A estrutura é dada a partir de uma fixação particular desse drama, os desdobramentos ocorrem em torno dessa chave única, aqui, o luto. Independente de feitiços, maldições, curandeiros, a dor existe como uma âncora que encerra a personagem em um cárcere claustrofóbico. Ela é a própria assombração e a superação não é um fato unilateral. Por essa razão, a linguagem recorre aos planos fechados, os closes e perspectivas “internas”, conseguindo algumas construções memoráveis. A sequência do primeiro pesadelo é impressionante, alternando a perspectiva de maneira que bagunça o espaço e o espectador é enganado pelos cortes. E para isso, a fotografia vai atrás de um contraste que também varia com a cena, do azul à sépia, os planos são projetados de acordo com a unidade dramática “local”.
Porém, “Zana” é tão arrastado que o espectador se dispersa em meio ao processo cíclico de luto, o que era interesse nos primeiros vinte minutos, torna-se monotonia logo em seguida. É uma chave funcional, mas repetitiva. A proposição estóica da imagem, acaba parando na própria limitação da representação que essa identidade de Kosovo se articula. Esse trauma da guerra acaba assombrando a própria produção, que não encontra uma saída que não a repetição incessante das cenas onde a protagonista é frustrada pelo conservadorismo patriarcal que domina a região. É uma consciência que é o fantasma de si e acaba fazendo o projeto degringolar com o tempo. Quanto mais o longa avança, mais óbvia a resolução se torna. E os minutos finais mostram um recorte que se curva ao mercadológico por uma necessidade catártica desse sentimento. Um fatalismo que é definitivo, entre essas memórias e o clima que castiga, a própria matéria passa a se confundir no meio da paisagem.
A iniciativa de assimilar os espaços como uma força dramática inigualável por qualquer outro dispositivo, é bastante eficiente. E o espaço aqui se refere não apenas ao meio em si, mas ao próprio limite do quadro. Não por acaso os close são constantes. Mesmo quando diversos personagens estão em cena, eles são o limite desse próprio quadro, o universo é de “Zana” é rigorosamente castrado. O espectador nunca está confortável durante a projeção, cada frustração que surge nas sequências são utilizadas para secar qualquer refúgio em meio à tragédia, a memória. A cena do futebol mostra uma liberdade maior, a câmera se desprende, amplia, percorre, flutua, mas logo é interrompida por um corte que retoma o caráter místico da obra, uma bronca e o retorno ao rigor dessa perspectiva que mantém-se em uma distância de respeito, mas invade a protagonista. Nem com o tecido vermelho cobrindo o rosto o espectador permite sua liberdade. A câmera invade sua perspectiva e lhe rouba a privacidade, assombra novamente. E é esse tom de observação que domina esse sofrimento. Estamos vendo ela sofrer, não há resolução, apenas repressão e depressão, é uma tragédia anunciada (em uma grande interpretação de Adriana Matoshi). Por essa razão, a obra se torna previsível e demasiadamente arrastada, pois os ciclos se encerram e retornam ao ponto basilar desse sofrimento que não possui fim, cria o entrave da protagonista, sucumbe com a esperança em ventre e se confunde na memória.
Se a “maldição” é verdadeira ou não, pouco importa, mas a história é o pior castigo que a memória pode trazer. E a infertilidade é o vazio que não cessa. “Zana” é o “mãe!” que deu “certo”.