Viagem dimensional de doze segundos
Por Fabricio Duque
E se os Beatles nunca tivessem existido? E o Oasis e Harry Potter? E se a Coca-cola fosse uma referência direta a Pablo Escobar? Estas suposições geram a premissa fantasiosa do novo filme de Danny Boyle (de “Quem Quer Ser Um Milionário?”), que por um desarranjo do Universo, o protagonista da história, um “fracassado” músico que ao sofrer um acidente, consegue alinhar paralelos mundos temporais. O físico Stephen Hawking, baseado em uma limitação da teoria de Albert Einstein sobre como o Universo teria começado, construiu a solução do paradoxo cósmico.
Pela mecânica quântica, o Big Bang não teria criado apenas um, mas inúmeros universos. E ainda podemos incluir nossos “eu” duplos que co-existem em outras vidas. Contudo, cada Universo é diferente dos demais em tempo e acontecimentos (como é o caso de “A Morte Te Dá Parabéns 2”; “Homem-Aranha: Longe de Casa”; e essencialmente “De Volta Para o Futuro”). Isso permite que o longa-metragem possa ser mais crível aos olhos da ciência.
“Yesterday”, título de uma das icônicas músicas dos garotos de Liverpool, poderia ser mais uma comédia romântica, se não fosse a direção de Boyle (de “Transpotting”, “Cova Rasa”, “A Praia”, “127 Horas”, “Steve Jobs”) e principalmente pelo roteiro de Richard Curtis (de “Um Lugar Chamado Nothing Hill”, “O Diário de Bridget Jones”, “Quatro Casamentos e um Funeral”, “Cavalo de Guerra” e “Trash – A Esperança Vem do Lixo”). O filme equilibra o humor espirituoso e direto com uma coloquial suavidade pop. É tipicamente inglês, entre o realismo sôfrego e o sentimentalismo não clichê de estar “perdido em um país estrangeiro sem falar a língua”.
O longa-metragem é sobre a luta nossa de cada dia para conseguir ser o que sempre desejamos e precisamos ser. É o caminho trilhado de mais um artista, que se desdobra em dois para sobreviver e manter o sonho vivo. Jack Malik (interpretado de forma irretocável pelo ator britânico Himesh Patel) canta em “todo lugar” de Nova York, após seu trabalho “oficial” e remunerado. E vibra de felicidade e emoção quando é escalado para um “festival de verdade”.
Entre elipses, sarcasmos, ofensas cúmplices e crença absoluta do continuar (depois de tantas decepções), ele (o “coelho do avesso”) e seus amigos, unidos e zombeteiros-brincalhões, embarcam em uma estranha e surreal experiência. De um apagão de doze segundos, encontram estranhezas. Jack, principalmente. Que ganha a possibilidade de se tornar outro para vivenciar o sucesso e provar que não é um fracassado (ainda que “esta vida não seja dele”). Sim, cruel e sádico. Sim, Rolling Stones e Coldplay não desapareceram. Tampouco o músico Ed Sheeran (“Antonio Salieri“, que empresta seu nome a um papel ficcional, que entra em “competição batalha épica” com os “Beatles” (“Mozart”).
Uma intervenção celeste ou um transe coletivo de esquecimento? Beatles agora são meros insetos. E Jack agora precisa lembrar das músicas (principalmente de “Eleanor Rigby” – começa a mapear os lugares das canções) e aceitar o “cálice envenenado da fama” e a “imagem para a fala de imagem”. Assim, quanto mais o filme é desenvolvido, mais engraçado e divertido fica, como esta dimensão criticando as músicas de John, Paul, Ringo e George. Ao cantar as músicas dos quatro ingleses, torna-se “Shakespeare da música pop”.
“Yesterday” é também uma crítica ao mundo moderno. Pseudo politicamente correto. Que precisa ser totalmente inclusivo e excessivamente policiado. “White Album” dos Beatles no mundo atual “significa diversidade”. Nós somos estimulados a questionar: como seria o mundo dos Beatles neste carnaval midiático dos dias de hoje? “Hey Jude” vira “Hey Dude”. Quanto mais o filme é estendido, mais o roteiro necessita de saídas: viajantes do tempo e a redenção de não mais ser “a sombra dos outros” e viver uma “mentira”. E assim, “All You Need is Love” eleva-se. A metáfora auto-ajuda enaltece o amor que simplifica e que nos mostra que talvez uma vida feliz seja apenas estar ao lado de quem amamos. “Yesterday” faz pensar e resgatar o estilo minimalista de ser, seguido por Steve Jobs, que idolatrava The Beatles. Um filme que conduz com leveza a complexidade presente em cada um de nós.
O ator Himesh Patel conta que Danny (“Himesh não era o candidato óbvio. Ele não tinha muito histórico musical em filmes, se é que tinha algum. Mas quando ele começou a tocar as músicas, pensei: é isso, precisa ser ele”) e Richard “queriam que eu fizesse um monólogo de uma peça e tocasse uma música do Coldplay no violão” (referência que está no filme “Yesterday não é um “Fix You” do Coldplay, mas…”). “É estranho pensar em um Beatle me vendo cantar suas músicas”, finaliza.