What Did Jack Do?
Comemoração surrealista com macaquinho falante
Por Fabricio Duque
Netflix
Para comemorar seus setenta e quatro anos de existência, o cineasta David Lynch, o mais independente dos realizadores, lançou na plataforma Netflix seu mais novo e inédito curta-metragem. Uma surpresa que os fãs puderam conferir no dia vinte de janeiro, mesma data de aniversário do diretor italiano Federico Fellini (que comemora centenário póstumo) e de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro.
“What Did Jack Do?”, com seus dezessete minutos, comporta-se como uma experiência extra-sensorial ao conjugar realismo fantástico e surrealismo. O tom, absurdo, estranho e quase bizarro, corrobora a característica principal de Lynch, diretor de “Veludo Azul”, “Twin Peaks” e “Cidade dos Sonhos”. É uma imersão em um sonho projetado como condução etérea. Uma epifania personificada do universo desconstruído e sem sentido que adentramos durante o estágio em que nossa consciência adormece para dar lugar ao subconsciente.
Nós, principalmente pela estética visual, preto-e-branco, desenhada aos moldes de fotogramas antigos e reencontrados, somos convidados a participar de um interrogatório de um macaco falante, suspeito de assassinato, talvez por amor passional a uma galinha. É inevitável não referenciarmos seus filmes anteriores e as desconexas “pistas” inseridas.
Cada obra de Lynch descortina uma viagem temporal e psicológica, dosando loucuras, estabilidade, simulacro, axioma, ficção, fantasia e concretude da verdade peremptória. “What Did Jack Do?” utiliza-se da técnica de inserção de elementos humanos (que visa o amadorismo explícito como propósito orgânico da criação), como os lábios mexendo na expressão do macaquinho.
No curta-metragem, são apenas quatro personagens: o interrogador detetive (o próprio David Lynch, que também escreveu, editou e produziu o curta), o macaco Jack Cruz (que na verdade é a veterana Katie – para quem não reconhece, foi Marcel no seriado “Friends”, o teimoso animal de estimação de Ross, o ator David Schwimmer), uma garçonete (a atriz Emily Stofle – que viveu a personagem Sophie na última parte de “Twin Peaks”, também produzida pela Netflix) e a galinha Toototabon (ela mesma). Nós nos damos conta que não se precisa de muito para se contar uma história. Até porque o mais importante é a essência do conceito abordado. E que mesmo esse projeto figura desde 2017 na lista do IMDB.
Como já foi dito, “What Did Jack Do?” é uma experiência. Uma sobremesa ao melhor estilo de David Lynch (o “reizinho surrealista”, como está sendo chamado no trending do Twitter), que nos incomoda com sua estranheza e nos encanta com a veracidade, que nunca se transmuta ao comercial e/ou palatável e/ou desrespeitoso com nossas sinapses evolutivas (que não identifica metade das citações, mas compreende que a forma é muito mais focal que os detalhes verborrágicos).
Assim, nós podemos entender ainda mais se conferirmos o filme “Transcendendo Lynch”, de Marcos Andrade e Julia Martins, sobre sua vinda ao Brasil e seu processo quando escreveu “Em Águas Profundas” (confira aqui resenha e trechos). E/ou em “David Lynch: A Vida de Um Artista” (crítica aqui), de Jon Nguyen. E/ou em nosso podcast Rádio Uerj 51 sobre o cineasta: #51 David Lynch (link aqui).