Você é o Universo
A princesa e a espaçonave
Por João Lanari Bo
Assistido durante o Festival de Cinema Europeu Imovision 2025
“Você é o Universo”, primeiro longa-metragem do ucraniano Pavlo Ostrikov, é, literalmente, um ponto fora da curva. Ou ainda, um ponto fora do espaço – uma ficção científica temperada de conto de fadas, produzida em um país que atravessa um período de turbulência radical, a partir da invasão de tropas russas em seu território em fevereiro de 2022. Mesmo que não tenha sido essa a intenção do cineasta, uma certa condescendência se impõe: como foi possível imaginar uma história como essa, ingênua e totalmente alheia ao que se passa no imediato da tragédia, onde milhares de pessoas morrem vítimas de mísseis e drones lançados diariamente do inimigo, a vizinha Rússia?
O plot é de uma simplicidade comovente. O astronauta Andriy Melnyk – ou Andrukha, seu apelido afetivo – viaja solitário pelo sistema solar, transportando uma quantidade inimaginável de lixo nuclear para Calisto, a segunda maior lua de Júpiter – descoberta em 1610 por Galileu Galilei e Marius. O nome, como sói acontecer no espaço sideral, vem da mitologia grega: era uma ninfa que se tornou amante de Zeus (Júpiter para os romanos) e, posteriormente, foi transformada em ursa por Hera (Juno). A referência romântica de Calisto choca-se com a realidade do dejeto nuclear – sabemos que foi na Ucrânia onde ocorreu o maior acidente nuclear da história, Chernobyl. Um assunto, portanto, de sensibilidade especial para o público local, e também para o resto da humanidade.
Acompanha o viajante um único companheiro, Maxim, robô de um braço só, programado para fazer piadas e gerenciar a espaçonave – basicamente um cargueiro, cuja viagem, ida e volta, dura quatro anos. Essas informações são prestadas através de uma breve animação que abre o filme, anunciando o caráter infanto-juvenil de “Você é o Universo”. Maxim, cuja função principal é garantir a sobrevivência e a sanidade de Andrukha, revela-se um tanto irritante, como se fora uma instância de controle parental. No meio da jornada, o astronauta descobre que foi demitido do emprego em função de erros imperdoáveis em missão anterior e, revoltado, destrói o monitor de comunicação. Mas o pior ainda estava por vir.
Uma luz ofuscante inunda as escotilhas a caminho de Calisto – é a Terra, onde se sucedem explosões que levam ao fim abrupto do planeta! De início Andrukha tem um ligeiro abatimento, mas logo realiza que, mesmo sendo o único ser humano sobrevivente no universo, logrou se livrar do empregador e aborrecimentos conexos. “Você é o Universo” navega aqui entre a comédia e a perspectiva pueril: não importa se Maxim alerta que restam apenas 16 meses de provisões, que cedo ou mais tarde será o fim. O astronauta, num gesto transgressor, abre uma caixa de aniversário suposta de ser aberta cinco meses à frente, lembra Maxim. Dançando meio sem jeito, embriagado com um remédio que surrupiou do robô, ele contempla seu “presente” – um exemplar de Robinson Crusoé, o famoso náufrago que ficou trinta anos isolado numa ilha no Caribe.
Ficção científica sempre foi um gênero popular na antiga União Soviética, onde se localizava a Ucrânia. Com uma influência forte da literatura, russa ou estrangeira – Edgar Rice Burroughs e seus livros passados em Marte, com heróis da Guerra da Secessão abduzidos por marcianos verdes, eram best-sellers na URSS. O cinema soviético explorou o gênero desde o início, como foi o caso de “Aelita, a rainha de Marte”, de 1924. A conjunção do gênero com uma orientação pedagógica para jovens também atraia grandes públicos. O Estúdio Gorky, que produziu mais de mil filmes, muito deles dirigidos por ucranianos, era especializado nessa seara. Tamanho interesse ia – e vai – em paralelo com o pioneirismo russo no que toca a viagens espaciais (Sputnik foi o primeiro satélite lançado, e Yuri Gagarin o primeiro astronauta no espaço).
“Você é o Universo” inclui-se, portanto, nessa tradição. Quando Andrukha localiza uma alma perdida atrás dos anéis de Saturno e viaja 800 milhões de quilômetros para encontra-la, é o páthos romântico que prevalece. Pelo menos um ser humano sobreviveu, uma astrofísica francesa que tem tudo para se tornar objeto amoroso do solitário ucraniano, mesmo que seja por um último suspiro.
A Terra explodiu – não resta mais nada, a exemplo do que ocorre com as cidades arrasadas pelos bombardeios russos. A guerra não é mencionada uma só vez no filme de Pavlo Ostrikov, mas paira, em algum lugar, no universo.