Viver Lá
Esplendor na Relva
Por Jorge Cruz
Um homem sobe um morro enquanto acompanha alguns bezerros. Os sons são de aves nativas e os barulhos de corujas denotam que estamos nos extremos da ocupação do Sol. Dessa maneira “Viver Lá“, o primeiro longa-metragem dirigido pela chilena Javiera Veliz Fajardo, nos propõe uma experimentação sobre a insignificância humana e – visto sob outro ângulo – sob a relevância de qualquer outro elemento.
As poucas personagens que aparecem dificilmente são enquadradas de perto. O filme não se limita a uma contemplação ou à mera elasticidade temporal. Ele infiltra suas sequências, sem pretensão de definir cronologia ou importância, de tal maneira que o espectador pode se pegar em determinado momento tentando resgatar uma passagem sem saber quando exatamente ocorreu. É possível que, como uma boa provocação dessa estética, o público se perca em seus próprios pensamentos e crie devaneios legítimos a partir da viagem construída por Fajardo.
No Chile não há dúvidas de que “Viver Lá” é um documentário, sendo assim apresentado. Neta de agricultores da região de Totoral, a cineasta retrata um ambiente diretamente ligado com suas origens, sua ancestralidade. Porém o faz com o total desapego narrativo, não revestindo nenhum ato de objetivo imediato. Tudo o que acontece no longa-metragem parece transitório ou transição. A câmera não precisa se mover, pois o abandono do vento faz com que apenas um diminuto homem divague pelo ecrã. Em um processo de desertificação de tudo o que era verde – e de verdificação em tudo o que era gelo – Fajardo universaliza sua obra com a mera utilização da imagem. É um exercício em conjunto a troca que faz daquele compilado de belas sequências uma construção de mensagem. Aliás, o que se atinge ao final da sessão é uma perspectiva unicamente pessoal – não é possível realizar generalizações sob nenhum aspecto.
Saber que estamos em Totoral pode ser tão fundamental para alguns quanto um mero detalhe para outros. Como o nome completo do filme já diz “Viver ali não é o inferno, é o fogo do deserto, a plenitude da vida, é existir como uma árvore“. Com uma espécie de desfile de elementos, a Natureza é mais do que uma personagem, uma vez que se esfarela em muitos outros. Para um agricultor, a neblina pode ser motivo de comemoração ou lamento. Em “Viver Lá” ela é apenas um fator. O mesmo com o sol, o fogo e – claro – o vento.
Uma obra que nos força a pensar em territorialidade em mais de uma ótica. Assistir a um filme é comungar. Dentro dessas comunhões possíveis, o lugar que qualificamos como “nosso” é um dos mais fundamentais. Talvez por isso Fajardo (que além de diretora é roteirista, diretora de fotografia e editora da obra) evita ao máximo a montagem sobreposta. Uma delas, ironicamente, é um dos momentos mais bonitos: quando um céu estrelado vira uma selva de pedras – e urubus. Uma transformação de habitat conduzida, o que a tornaria impossível em uma perspectiva realista.
Existir como uma árvore é quase como se M. Night Shyamalan tivesse gritado para poucos ouvirem em 2008 quando lançou “Fim dos Tempos“. A Justiça tarde, mas não falha. Há uma vontade de ser apocalíptico que mantém o humano como eterno explorador da Terra. Comporta-se como se fosse dono não deixa de ser uma representação buscada por essa produção. Mesmo diminutos, com ausência de elementos básicos de sobrevivência, eles insistem em manter a pose de proprietário de algo ou alguma coisa. Ou seja, são incapazes de se conectarem com o que há em sua volta, pela certeza de serem auto suficientes e o que não são eles fatalmente serão longa manus de alguém.
Traçar essas mal escritas linhas é a confirmação de que o resultado obtido com o filme é a da confusão interna – mais do que a desconstrução. No fluxo de intenção ao qual a obra surge, o que há de roteiro é a criação de um fato (o sumiço) para travestir-se de trajeto. Para os que consideram a chegada da chuva o clímax de “Viver Lá”, é possível que seu ódio pelo verão seja proporcional ao sofrimento de quem vive em uma área desértica. A chuva carrega consigo a esperança, mesmo que se revele apenas um afago temporário. O que Javiera Veliz Fajardo faz é incutir em nossa mente o sonho de que a primavera é possível.
Uma primavera de solidão, que tem início com o esplendor das flores e uma convidativa luz do sol estourando a lente. Assim como nos reducionistas e limitadores finais felizes de uma comédia romântica, “Viver Lá” quer dar a entender que estar satisfeito com o que tem – mesmo que muita tenha se perdido – basta. De maneira inteligente, a câmera não acompanha o futuro, pois sabe que não há idealização que se sustente.