Visões do Império
Colonialismo visto do panóptico
Por Bernardo Castro
Mostra de São Paulo 2021
Não nos livraremos facilmente dessas cabeças de homens, dessas orelhas cortadas, dessas casas queimadas, dessas invasões góticas, deste sangue fumegante, dessas cidades que se evaporam pelo fio da espada.
AIMÉ CÉSAIRE, Discurso sobre o Colonialismo
A colonização portuguesa, muitas vezes vista como brando se comparado com o processo colonizatório de outras nações europeias, foi um período de extrema violências, onde as resoluções de ética foram completamente ignoradas, resultando em diversos crimes hediondos cometidos e deixando para traz sociedades repletas de mazelas advindas de tão sanguinário regime. Em “Visões do Império”, a realizadora Joana Pontes parte de seu ponto de vista pessoal, em virtude de sua vida pregressa em Luanda, atual capital da Angola e antigo território ultramarino português. A partir de sua experiência pessoal, ela vai atrás de relatos de outras pessoas, montando uma colcha de retalhos com os diversos fragmentos de vivências alheias unidos aos dela própria.
Grande parte das cenas são ambientadas dentro de arquivos nacionais portugueses e bibliotecas públicas. Toda a trama é conduzida em grande parte por meio de um tom estéril, perpassando análises de diferentes achados arqueológicos por historiadores e profissionais da arquivologia portuguesa. Mesmo nas cenas passadas no mercado de pulgas, no momento de mais calor humano, há uma ausência notória de sonorização, mantendo a regularidade do tom asséptico, que se estabelece no final do primeiro terço de filme e traspassa grande parte dele. Tudo isso passa ao espectador menos paciente a impressão de uma cadência pouco ritmada e faz com que o documentário encontre dificuldades de prender a atenção de tipos como o citado.
“Visões do Império” reflete acerca do próprio processo fotográfico em si – às vezes até se isentando do debate sobre o colonialismo em si. Para além do propósito de expor o passado sombrio de Portugal em antigos departamentos ultramarinos, são mostradas as diferentes facetas do processo fotográfico, que transcende o simples registro visual. Nos primeiros momentos, a narradora reitera o quão poético é o ato de fotografar, ato este que congela uma fração de tempo e a eterniza, além de encerrar neste simplório momento, agora eterno, os muitos sentimentos e recordações relacionados a ele. Nas entrelinhas, é ressalta o caráter ambíguo da fotografia: a mesma ferramenta utilizada para a propaganda do império e da suposta igualdade entre seus habitantes posteriormente é caçada e proibida por elucidar as irregularidades praticadas pelo governo, evidenciando que, ao mesmo tempo, é uma arma reacionária e revolucionária, dependendo do quão hábil é o fotógrafo e de quais são suas intenções.
No que concerne a temática, Joana se inspira em Eduardo Galeano e procura expor as veias abertas do continente africano pós-colonial. No entanto, o grande erro epistemológico se encontra na falta de profundidade de seus depoimentos. O longa conta com apenas um depoimento de uma pessoa negra que dificilmente cresceu e vivenciou o horror colonial. Assim, é passada a ideia de uma crítica rasa ao colonialismo feita por cima de um panóptico, com pouca pluralidade de experiências e não dando voz àqueles que de fato foram afetados negativamente pela ocupação portuguesa na África. Nos primeiros momentos, inclusive, dá-se a entender que há uma tentativa por parte da diretora de manter-se neutra ou alheia à situação e, como bem se sabe, em temas como esse não é razoável se abster. O filósofo político Franz Fanon afirma com veemência que não há a possibilidade de se ter um processo de descolonização – neste caso, desconstrução da colonização – sem que haja violência. Por mais que seja considerado por muitos demasiadamente violento em seus discursos, pode-se entender que, ao esboçar um retrato de um passado sangrento, é essencial deixar nítida a oposição sempre que possível. Com o decorrer do filme, ela procura corrigir os seus passos e não se exime da culpa que sua geração carrega e procura encerrar suscitando uma reflexão acerca do que foi feito por seus compatriotas.
Em resumo, deve-se reconhecer a tentativa de redenção por parte dos que conceberam o documentário, mas a homogeneidade de vozes empobrece o diálogo e, ironicamente, repete uma práxis criticada em determinado momento de “Visões do Império” – ele esvai os povos autóctones das ex-colônias de qualquer subjetividade, já que suas vozes não são ouvidas e suas histórias são contadas através de terceiros pouco envolvidos e incapazes de compreendê-los integralmente.