Vidas Passadas
Amor no futuro do pretérito
Por Pedro Sales
Festival de Berlim 2023
A perduração e idealização do primeiro amor, um dos sentimentos mais puros e ingênuos, é a questão central de “Vidas Passadas”, longa que esteve na competição oficial do Festival de Berlim 2023. O romance dramático marca a estreia de Celine Song na direção. Vinda do teatro, a cineasta demonstra muita solidez e maturidade na mise-en-scène, explora o contraponto entre a potência dos diálogos com o não-dito. A sensibilidade para tratar do tema relaciona-se, ainda, com a experiência pessoal de Song. Existe uma máxima para a escrita criativa que diz o seguinte: “escreva sobre o que conhece”, e é isso que a diretora faz. Celine parte de sua própria vivência para construir a protagonista. Ambas são coreanas, dramaturgas, filhas de diretor de cinema e ficaram entre dois amores, o de infância e do presente. Apesar de ser uma informação extrafílmica, portanto dispensável para a fruição da obra, o viés semiautobiográfico provoca reflexões e amplifica o peso das relações no filme.
Três pessoas estão juntas em um bar, uma mulher coreana, um homem coreano e um americano. Parece início de piada, mas a trama se inicia com essa configuração que não revela muito. Vozes em off tentam adivinhar quem são aquelas pessoas. Irmãos? Guia turístico? Para responder tal questão, volta-se ao passado. Nora e Hae Sung são amigos de escola e nutrem, meio que secretamente, um primeiro amor. O problema, no entanto, é que ela se muda da Coreia do Sul para morar no Canadá. Anos depois, já adultos, Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo) finalmente se reencontram, primeiro pela internet, e anos depois pessoalmente. O tom, então, torna-se melancólico e nostálgico, uma vez que as idealizações do passado são confrontadas com as decisões de vida e o destino. Entretanto, a direção de Celine Song aproveita esses sentimentos com uma condução intimista, sem exageros. Tudo é muito contido e consequentemente sensível.
O principal conceito em torno de “Vidas Passadas” é o fatalismo. Em dado momento, Nora explica a Arthur (John Magaro) o que é In-Yun. O conceito coreano significa destino, mas estritamente sobre relação interpessoais. O encontro casual entre duas pessoas depende das vidas passadas para se firmar como amor, por exemplo. De certa forma, In-Yun rodeia o relacionamento de Nora e Hae Sung. Tantos anos longe em um vai-e-vem, o reencontro parece ser destino, porém nem tudo é tão simples. Em razão disso, a obra é muito autoconsciente do caráter melodramático que poderia ter- tanto clássico ou estilizado como “Amor à Flor da Pele” – inclusive se torna até brincadeira de um dos personagens. Song, no entanto, não se rende ao gênero, a direção propõe o romance não concretizado em um verniz realista. Não há vilões na história dos dois, apenas parece que o destino quis outro caminho. Talvez essa tenha sido uma vida passada para as almas se finalmente se unirem nas vidas que virão?
O roteiro de Celine Song é bastante conciso na relação Nora-Hae Sung. Ela tangencia os demais personagens, à exceção de Arthur. É um universo unicamente sobre os dois. Em razão disso, a cineasta pontua as emoções por meio dos diálogos e silêncios entre eles. Quando separados geograficamente, o silêncio se torna introspecção, um desejo calado de ter o outro por perto, enquanto o silêncio ao lado do outro remonta à timidez infantil do primeiro amor. Os diálogos, por sua vez, quase sempre dilacerantes são dotados de extrema sinceridade, uma franqueza quase didática ao público. A cada nova pergunta, fica evidente que a vida seguiu e o amor ideal não se realizou. É por isso que a cena com os três é tão forte, é o reconhecimento desse fato, tanto para ele quanto para ela. Os reenquadramentos de Celine que ora juntam Nora e Hae Sung, ora os separa, é a melhor representação visual do que o destino reservou aos dois – assim como a cena da escadaria com caminhos diferentes -, uma história do que poderia ter sido. A polidez de Song se reflete também na fotografia que explora muito bem o contraluz e os closes, além de reforçar a introspecção silenciosa com planos contemplativos.
“Vidas Passadas” é um romance desolador, uma não-história calcada nas possibilidades e nas conjecturas de qual seria o destino se as escolhas fossem diferentes. Em resumo, o filme de estreia de Celine Song representa o amor no futuro do pretérito. Idealiza-se o passado pensando “será que nos casaríamos, teríamos filhos?” e afins. De certa forma, é uma temática dura que acessa emoções comuns a muitos espectadores. A identificação, então, é um ponto importante na obra, entretanto não se estrutura apenas nisso. A crueza dos diálogos, que são diretos até demais, por exemplo, deixam essas emoções e conflitos na mesa, assim como a atuação de Greta Lee concentra evidentemente o conflito entre passado e presente. Hesitações e dúvidas fazem parte da personagem, ao passo que a interpretação de Teo Yoo demonstra uma carga idealista e até melancólica muito delimitada. Não é para menos, diante do amor infantil e puro não concretizado, só resta duas coisas: o choro nos braços do presente ou a esperança do In-Yun, dessa ter sido uma vida passada.