Vento na Fronteira
Filmar a beleza do vento
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
A bem da verdade, não se deve aderir tão facilmente à velha dicotomia entre ‘ficção’ e ‘documentário’ no cinema. Sabemos que todo filme é inevitavelmente documental (este é um aspecto essencial da prática fotográfica, que registra mecanicamente os seus objetos) ao mesmo tempo em que é inevitavelmente ficcional (se um filme é feito por um ser humano, ele é, em alguma medida, construído a partir das inclinações particulares desse ser humano; por isso, pouco objetivo). Toda ficção, por mais explicitamente ficcional que seja, tem algo de documental, e todo documentário, por mais explicitamente documental que seja, tem algo de ficcional.
Quem compreende essa afirmação, compreenderá ainda uma outra, derivada da primeira: no cinema, a imparcialidade não existe. Já que estamos sempre entre o documentário e a ficção, entre o registro mecânico e a interferência do autor, não há um olhar imparcial possível. Sempre há uma dose de imitação (mimesis) da matéria bruta e uma dose de construção (poiesis) em cima dessa matéria bruta.
Vejamos, como exemplo, a sequência de abertura de “Vento na Fronteira”. O filme nos coloca num ambiente, ainda não situado geograficamente, e nos dá a sentir, através de um louvável trabalho de edição e mixagem de som, a série de elementos ali presentes: o fortíssimo barulho do vento, o balançar das árvores… a descrição prossegue: somos apresentados a uma casa, na qual habitam algumas pessoas. Essas pessoas, supomos que são indígenas, devido à língua que falam: o guarani. Elas conversam sobre a dificuldade de obter água na região.
Essa sequência já explicita impecavelmente — à maneira da obra-prima “Terra” (1930), de Aleksandr Dovzhenko — a relação íntima entre o homem e a natureza que o cerca; os planos de folhas balançando ao vento são quase uma citação direta ao filme soviético. Filmada com um apuro formal impressionante — o belo trabalho de som, as composições visuais precisas, a iluminação controlada), ela parece pertencer a um filme de ficção, pelo grau de manipulação do assunto filmado. Mas não seria esse apenas um vício do espectador, o de associar o artificialismo à ficção e o realismo ao documentário, sem que esses dois mundos possam se misturar? Por alguns minutos, “Vento na Fronteira” propõe uma síntese desses dois conceitos e nos apresenta um tratamento criativo da realidade.
Evidentemente, não é só disso que se faz o filme: não demoram a aparecer alguns elementos característicos da forma documental, como os letreiros que explicam ao espectador tudo aquilo que a câmera apresenta: aprendemos que os indígenas retratados são os Guaranis-Kaiowás; aprendemos que o território em que habitam se chama Ñande Ru Marangatu, situado no estado do Mato Grosso do Sul; aprendemos que esse território se encontra em disputa judicial, e que uma família de fazendeiros reivindica a sua posse.
Representando essa família, está a personagem Luana Silva, apresentada pelo filme como “advogada [e] herdeira de terras”. Ela conta a sua história de vida, numa entrevista filmada no tradicional estilo “talking head”: quando criança, testemunhou tentativas de invasão da propriedade de sua família por parte de indígenas e, em decorrência disso, sofreu durante toda a infância com pesadelos nos quais era assombrada por eles. Fica aí, portanto, muito bem definida a psicologia da personagem, que — como agora entendemos — escolheu a profissão atual pelo trauma sofrido na infância e pela missão autoimposta de defender a sua propriedade contra os invasores monstruosos.
É esse, aliás, o retrato dos povos indígenas compartilhado pelas personagens brancas do filme: “Vento na Fronteira” revela um Brasil plenamente adepto ao mito do índio irracional e violento, ao qual o homem branco deverá reagir com uma violência ainda maior (não à toa, vemos imagens de protestos em Brasília reprimidos pela polícia e da ascensão de Bolsonaro, eleito sob a promessa de impedir a demarcação de terras e facilitar a posse de armas).
Após a apresentação dos dois lados antagônicos, os Guaranis-Kaiowás e os fazendeiros, continua-se desenvolvendo cada núcleo em paralelo. É nesse momento que o filme começa a manifestar um naturalismo pouco frutífero (como, aliás, não cansamos de ver no cinema brasileiro contemporâneo…): acompanhamos a rotina dos indígenas em suas casas, nas escolas; vemos, do outro lado, os membros da família de fazendeiros destilando o seu preconceito contra os “invasores”, detalhando os pormenores da batalha judicial… de modo que a narrativa do filme perde o seu aspecto linear e ganha uma dinâmica acumulativa, reiterativa. O filme elabora ad nauseam as diferenças entre os dois grupos até o momento de seu final arbitrário — o que é, em certa medida, inevitável, visto que o conflito colocado não se resolve.
Esse naturalismo paciente, quase à maneira de uma descrição etnográfica, prejudica, num certo grau, a experiência do filme, cuja duração nos parece maior que 77 minutos. Mas não chega a prejudicar a impressão geral deixada pelo filme, ainda positiva: “Vento na Fronteira” escapa, por um lado, do sentimentalismo barato que poderia assolar uma produção dessa natureza e, por outro, da vontade de ser um filme “neutro” (o filme obviamente toma o lado dos Guaranis-Kaiowás, o que, como discutimos acima, não representa problema algum). Dos seus melhores momentos, retemos a maneira como a câmera apreende e repassa ao espectador a visão de mundo dos seus objetos, sem antes realizar nela um acréscimo criativo (imitação + construção; mimesis + poiesis). As paisagens do Mato Grosso do Sul, habilmente fotografadas, e a conexão do homem com essas paisagens; o eterno balançar das folhas contra o vento que lhe serve de inspiração (não à toa teria dito D. W. Griffith que “o que falta ao filme moderno é a beleza — a beleza do vento se movendo nas árvores”)… Tudo isso nos interessa muito mais que o registro complacente da realidade.