Venice Beach, CA.
Para além do postal
Por Vitor Velloso
Durante o Festival do Rio 2021
Fugindo da representação convencional de um cartão postal norte-americano, “Venice Beach, CA.” traz um olhar distinto sobre a famosa praia estadunidense e coloca em xeque uma série de mitos construídos pela idealização da paisagem. O trabalho de Marion Naccache se concentra em registrar o local enquanto deixa rolar algumas gravações de áudio de pessoas sem-teto que vivem em parte da orla. O grande drama dos personagens é perceber que a marginalização não vem da ausência do Estado, mas é promovida pelo mesmo, a serviço das grandes fortunas privadas que residem próximo à região e contrariando a própria lei.
Esse processo eugenista não é necessariamente o maior foco do projeto, o maior interesse de “Venice Beach, CA.” é seu objeto espacial em si e os personagens que compõem essa paisagem pública e política. Mesmo que o espectador não possa ver quem está falando, é capaz de relacionar parte das figuras que são enquadradas com as vozes. Esse exercício acaba sendo um dispositivo importante para o funcionamento do filme, já que a suspensão do tempo não acompanha uma fragmentação do espaço, o que provoca uma complexidade no discurso inerente de cada um dos entrevistados. Mas também revela que na contramão de outros diretores, como Herzog, por exemplo, Marion se concentra nos espaços. O interessante é que ao registrar os lugares públicos e organizar as falas a partir de uma suposta desconexão com a imagem, a cineasta provoca uma ruptura parcial da experiência, capaz de explicitar o cotidiano da praia sem precisar objetificar cada recorte.
Nesse jogo dicotômico entre dois registros que se complementam na tentativa de compreender a realidade, o longa funciona não apenas como uma denúncia das políticas eugenistas de “Venice Beach, CA.”, mas um olhar de como o Estado torna-se instrumento de perpetuação das desigualdades sociais e a percepção dessa população sem-teto de um país que se orgulha das disparidades. Esses depoimentos são carregados de confissões e desabafos, onde as vozes se colocam diante dessas situações abusivas e encontram um espaço de existência. De toda forma, a falta de rostos para as múltiplas vozes acabam transformando essas histórias em casos fantasmagóricos, que não se materializam diante do espectador em nenhum momento. Mesmo que a intenção do documentário seja a de construir a imagem de terra-arrasada, contrapondo à clássica representação da praia pública, o processo torna-se estranhamente impessoal, por mais que a cineasta esteja a procura das figuras que atravessam suas imagens, a sensação é que no fim o espaço ainda é a maior temática.
A partir dessas decisões, “Venice Beach, CA.” entre boa parte de um funcionamento subjetivo à empatia do público ao escutar os relatos de degradação e perda de dignidade no cartão-postal da “terra da liberdade”. Esse processo não é particularmente difícil de ocorrer, já que a não-fragmentação dos espaços é acompanhada de seu fluxo cotidiano mas é atravessado por narrativas que se mantêm exteriores à imagem, ainda que auxiliem na compreensão totalizante de um contexto que é marcado apenas pela marcação natural do tempo. Tais registros imediatos da realidade, complementam os discursos que reforçam constantemente a ampla segregação social que está em curso, onde vemos as classes sociais em completa separação, com os ricos se deslocando livremente pelo centro e a população sem-teto sempre escanteada no quadro, à margem. De toda forma, nessas representações de um país em absoluta decadência social, econômica e cívica, vemos o Estado como grande motor funcional dessas disparidades. A denúncia dos personagens entrevistados é direta ao sistema vigente no EUA e cobra pelo cumprimento das leis que não apenas os protegem, como definem os próprios espaços públicos que estão ali enquadrados.
Por todas essas razões, “Venice Beach, CA.” é um destaque no festival do rio, por ampliar um espectro de debate através da exposição em si, permitindo que as observações e escutas possam construir um discurso que dê conta de compreender o público e o político como faces de uma série de medidas que retiram a dignidade de parte do povo. É um trabalho interessante na maneira como a sociedade é representada em um trabalho quasi-antropológico, dialogando com uma tendência artística contemporânea, mas sem confundir seus objetivos.