Venha Aqui
Um retrato febril
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2021
“Venha aqui” de Anocha Suwichakornpong tem um recorte no espaço-tempo que intriga o espectador nos primeiros minutos, uma espécie de sedução material que vai levando o público para memórias que desconhecemos e uma construção fragmentada que compreende as experiência em uma suposta simplicidade na direção. Até possui algumas transas com Apichatpong, mas tem menos da relação etérea com a materialidade e mergulha mais nas construções performáticas de ímpeto teatral sempre à espreita. A realidade é apresentada pelo espaço físico a partir das intervenções imediatas que a direção propõe, com recortes e divisão de tela entre duas narrativas paralelas ligadas em sua percepção do desconhecido.
Por essa razão, é fácil se desligar da narrativa e apenas entrar no barato das cenas isoladas, seja acompanhando um ensaio de corpos em assimilação com a natureza ou uma cena duplicada em dois espaços distintos. E assim, “Venha aqui” passa a construir seus significados a partir de uma mimesis da própria encenação, um diálogo imediato com o teatro que nunca deixa de existir, já que o projeto é pouco convidativo naquilo que é exterior à objetiva. Mas é essa não exposição que gera uma aproximação histórica, entre os encalços de uma política conturbada e a prosa de quatro amigos que debatem sobre um trem que parte para Myanmar. Contudo, a suspensão das paisagens políticas para o etéreo dos espaços faz com que a própria relação com o primitivismo de determinadas performances estejam vinculadas à relação do espectador com parte das questões ali dadas. E o próprio movimento de encarar a câmera de diversos personagens não cria grandes relações para além do próprio processo ali escancarado.
É interessante como Anocha consegue deslocar algumas cenas para diferentes perspectivas e enquadra uma nova verve diante dos mesmos diálogos, o exercício é curioso mas também não sai dos dispositivos que utiliza para criar as significações, a exemplo da transformação que ocorre no filme, como uma espécie de ode catatônico à transmutação de uma cena. Para conseguir formalizar esse desejo da tradução em um campo distinto, acaba recorrendo a determinados apoios da misancene, tanto a música quanto a própria marcação de determinados personagens. Por essa razão, é difícil se manter indiferente a “Venha aqui”, já que o longa parte de uma síntese imaginativa dos espaços, tanto pela sua ausência quanto pela própria memória anteriormente apresentada. É um diálogo que funciona na distinção política desses lugares. O trecho do sonho que atravessa um quadro, parte para a memória e acompanha os trilhos para um direcionamento urbano, levando ao material de arquivo do Zoológico de Dusit em Bangkok é particularmente memorável.
As músicas possuem um significado exterior à narrativa, sempre na recorrência histórica, na ode à cidade ou em um hino que inverte o jogo da significação do ensaio anterior. E é essa particularidade que acaba marcando boa parte da experiência, uma transa temporal com recortes breves de determinadas paisagens políticas, em uma diretriz fronteiriça que prende e urge na libertação de seus personagens em uma situação que pouco convém à narrativa. Não por acaso, o travelling ou a câmera na mão seguindo uma personagem possui um impacto urgente nos dramas expostos, pois essa fragmentação do rigor com uma realidade que converge no quadro apresenta duas faces dos espaços em constante mutação. O caos urbano é o delírio do passado e o presente é a febre de um futuro que não é permitido.
Sem grandes resoluções políticas para um cenário constantemente (re)encenado, “Venha aqui” se torna uma mistura de exposição contemporânea com crítica ao processo histórico. Se pensarmos na atual situação do país, entre uma monarquia e uma ditadura militar, esse ponto febril das memórias nos lembra da síntese desenvolvimentista que é interrompida pelo sonho em uma dimensão temporal e espacial distinta. Mas ainda que o filme consiga caminhar com uma dialética da simetria e de suas performances, as coisas podem acabar perdendo sentido muito rápido e o espectador vai abraçar alguns momentos isolados na esperança de chegar ao fim sem o desejo estoico de um belo que se esgota em si mesmo.