Valentina
Lei presente
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2021
O filme de encerramento da 24ª Mostra de Tiradentes, “Valentina” de Cássio Pereira dos Santos finda o evento que abre o calendário dos festivais de cinema brasileiro e o faz com importância única.
A obra que deveria ser assistida por boa parte dos brasileiros, seja por seu didatismo ou pela denúncia de uma sociedade que se encontra amparada por políticos que definem seus inimigos a partir de dogmas e preconceitos arcaicos, consegue compreender as particularidades da narrativa a partir de uma questão totalizante do Brasil. Com uma expectativa de vida que chega aos 35 anos de vida e 82% de evasão escolar, as pessoas trans são alvos constantes de reacionários dos piores tipos. O longa não propõe uma revolução, apenas pede o cumprimento da lei e o amparo de instituições de ensino para que a evasão não seja ainda maior. E para complementar parte dessa discussão, o filme se define em um ciclo de amizade com pessoas que são compreensivas com a situação de “Valentina” mas também se encontram em vulnerabilidade social. Seu amigo Júlio (Ronaldo Bonafro), que sofre com a homofobia local, e Amanda (Letícia Franco) que está grávida e não sabe se irá conseguir terminar o ensino médio.
Apesar da articulação em torno dos problemas sociais, a partir da precariedade de uma sociedade que é a margem da margem e de uma falta de resolução a partir de instituições estatais, o longa acaba entrelaçando parte dos eixos dramáticos com uma proposta mais usual de escolas, tratando de romances e intrigas. Alguns momentos não possuem grande repercussão narrativa e aparecem mais deslocados que os demais. Contudo, a relação dos amigos é de fundamental importância para o drama do filme e é um amparo necessário para a protagonista, que encontra ali uma esperança de solucionar uma questão particular, a ausência do pai.
E é onde Cássio Pereira dos santos aproxima a objetiva cinematográfica do rosto da protagonista para que possamos acompanhar de perto seus sentimentos. Em outros momentos, observamos em plano médio seu desolamento e planos que demonstram a clara ausência paterna, onde Valentina (Thiessa Woinbackk) e sua mãe, Márcia (Guta Stresser) dividem quadro em uma mesa de jantar. Como um todo, a linguagem está mais direcionada ao didatismo que a dialética, o que não se configura um problema, já que a obra busca uma compreensão geral de uma questão local, para ampliar o espectro ao âmbito nacional. Por essa razão “Valentina” não possui pirotecnias formais, pelo contrário, está constantemente à procura de uma mise-en-scène simples e funcional que encontra força sem recorrer à exposição constante.
Se em alguns momentos, o espectador acredita que haverá um cessar fogo dos conservadores é surpreendido por novas formas de ataque, em diferentes graus de violência. E o filme se utiliza dos espaços da cidade construindo perigos e confortos em cantos distintos. Com o avançar da trama e a tensão ganhando corpo, a narrativa se torna mais claustrofóbica, os planos se encerram em locais mais fechados e perigos surgem com mais voracidade. E um grande aliado para o sentimento é a interpretação de Rômulo Braga e Guta Stresser, em campos diametricamente opostos. Rômulo parece demonstrar algum sentimento de empatia, carrega raiva no olhar mas não se dispõe ao embate, ao confronto, é complacente de maneira geral. Sua resposta mais ácida é para Márcia, que cobra uma atitude mais firme do ex-marido. Guta faz uma personagem de força impressionante, com cuidados diversos para lidar com as situações da filha, acima de si.
Thiessa Woinbackk chama atenção para si com a firmeza de sua atuação e uma confiança que já transmite em toda sua carreira, interpretando uma personagem de força e personalidade únicas. “Valentina” é um belo filme que encerra com vigor a 24ª Mostra de Tiradentes e nos coloca novamente o debate iniciado há anos na Mostra, da importância de representar ou registrar uma luta diária que pessoas transgênero travam em um país onde o conservadorismo deu lugar ao reacionário e que encontra nos maiores representantes do Planalto os piores exemplos possíveis para uma melhoria nacional.