Uma Família Feliz
Mais uma dona de casa desesperada?
Por Fabricio Duque
Talvez, a etapa mais difícil no cinema seja mesmo a construção do tempo narrativo dos filmes, porque a missão está em manter a atenção do espectador enquanto toda a história se desenvolve. Sim, e parece que a maioria das obras cinematográficas reprovam nesse quesito. Outra questão também dessa arte é que suas criações são artísticas, e logicamente é preciso de um artista por trás para orquestrar todos os profissionais que compõem as produções. Cada função deve estar conectada como se fosse uma grande cisão orgânica. E por ultimo tópico desse preâmbulo, ainda há a questão subjetiva, de internalização, de individualidade desse diretor, o grande maestro, que assim, como a vida, apresenta altos e baixos em suas escolhas. Isso acontece muito no Cinema Brasileiro. Nós aqui temos a síndrome da colonização, em que influências de fora são preteridas as de nossa natalidade e conjugadas com uma limitada mentalidade de apenas passar a ideia, sem a maturação e lapidação necessárias da veracidade do que vemos. Sim, há no nosso modo de fazer filmes uma “preguiça” em “ter trabalho”, e assim essa ideia-argumento é “jogada” crua demais, amadora demais, caseira demais, ensaiada demais.
Mas sim de vez em quando essas preocupações são resolvidas com apuros técnicos, e um deles é “Uma Família Feliz”, do realizador prolífico José Eduardo Belmonte, que como todo “bom cineasta” de nosso país escolheu, após ter filmes independentes de excelência (como “A Concepção”, “Meu Mundo em Perigo”), aceitar o “lado negro da força” do cinema comercial bem mais popular de massa, como por exemplo, sua incursão em “Alemão”. Sim, a defesa é sempre a mesma: de que é preciso fazer filmes assim para ganhar dinheiro e depois com essa grana realizar projetos mais pessoais e underground, visto que estas obras “não vendem”. Pois é, há algo muito errado e “podre” no cinema produzido no “reino do Brasil”. E então, seu novo filme, felizmente, traz o frescor impulsivo de seus longas-metragens da primeira parte de sua carreira. A maestria de “Uma Família Feliz” está majoritariamente em sua construção narrativa. De conduzir o público por um universo de gênero, este se deve muito pela parceria com o Raphael Montes. O longa-metragem em questão é baseado no livro homônimo desse escritor, que lançou uma versão há mais ou menos dez anos (de “Bom dia, Verônica” e por seu programa de entrevistas, tendo inclusive Fernanda Young como convidada, esta personagem real do novo documentário de Susanna Lira, que integra a competição oficial da mostra brasileira do festival É Tudo Verdade 2024).
“Uma Família Feliz” é um filme de gênero, de terror thriller psicológico e traz uma crítica a toda essa estrutura perfeita, de aparência intacta aos outros e de fantasia comportamental de uma família. Sua narrativa é construída por uma ambiência de metafísica sensorial, de iminência do medo, de uma consequência “acordada” pela repetição padronizada de características típicas e modistas da sociedade. Essa condução, bem parecida e referencial a filmes como “Não Se Preocupe, Querida!” (2022), de Olivia Wilde; e “O Anjo Malvado” (1993), de Joseph Ruben; e/ou tantos outros que têm o objetivo de desnudar e expôr hipocrisias e fragilidades internas dessas relações cônjuges. Quem não lembra do seriado “Desperate Housewives”? Sim, este filme tem narrativa e plot twist bem semelhantes da série de 2004. Porém, para que toda essa construção continue seu equilíbrio e cadência coloquial, há obviamente os atores que terão que emprestar suas qualidades cênicas para que suas personagens existam fora da ideia dos roteiro.
O elenco de “Uma Família Feliz” conta com a atriz Grazi Massafera e o ator Reynaldo Gianecchini e uma das atrizes mirins, Luiza Antunes. Precisamos confessar e “aceitar” que cada um ali se entrega completamente para se desvincular dos costumes interpretativos advindos das telenovelas e incorporar quase metodicamente seus papéis. E conseguem. Sim, não é fácil para esses atores perder os “cacos” já tão naturalizados e automatizados. Sim, também não podemos retroalimentar nossa cumplicidade para com o cinema brasileiro, que possui em sua essência inúmeras questões problemáticas estruturas. Talvez esse seja o porquê de sentirmos tanta discrepância se o compararmos com outras geografias. Há inclusive a máxima: “Temos que falar sempre bem de nossa cinematografia”. Não, não temos. A crítica faz crescer. E mudar. E melhorar. Por exemplo, “Uma Família Feliz” começa apresentando uma das cenas finais, para que assim, cause no público a curiosidade e atenção de assistir todo o filme, que retorna a seu início de ambientarmos na história de uma família “comercial de margarina”. O artifício narrativo de uma atmosfera superficial acaba soando didática demais (tudo é verbalizado e não há sutilezas – características essas de uma novela), como se os profissionais do próprio cinema brasileiro não acreditassem que o público pode pensar sozinho. Mas sim a obra aqui vai se desenvolvendo em processo até encontrar seu ritmo perfeito e construir a mise-en-scène.
“Uma Família Feliz” quer trazer uma intimista crônica fabular de uma mulher que vive sob o poder de seu marido. O filme, uma crítica a essa impossibilidade da liberdade dela (de “brincar de boneca”), lembra a “Barbie” (em versão grávida) e todo seu discurso feminista, quando aqui essa personagem principal, vivida por Grazi, sente o peso e a pressão desse mundo, que praticamente começa a se despedaçar. Ela “acorda”. Sente o desprezo, o julgamento, o sadismo, o egoísmo e o machismo de todos. Uma falsa simpatia social. É agora uma “dona de casa desesperada”, que a cada verdade descoberta adentra na loucura da mudança. Aos poucos, Grazi nos mostra que é uma excelente atriz, por expressar reações naturalistas. O “peito descartado” e/ou o primeiro pedaço de bolo, por exemplo. E/ou o sexo e o parto. A trama de Raphael Montes fica mais complexa e profunda. A protagonista chama-se Eva (referência a primeira mulher do mundo?) trabalha fazendo bonecas realistas para pais que perderam seus filhos. Sim, muito “Servant”, de M. Night Shyamalan. A ligação permissiva quase doentia do pai com os filhos.
Sim, “Uma Família Feliz” adentra no suspense realista. Nesse ponto, não há mas. Só uma construção de pistas falsas, que o roteiro faz questão de manipular de forma precisa o público. Somos confundidos a cada reviravolta e é assim mesmo que se faz um filme de terror psicológico-psicopata, e ainda com cenas pós-créditos, que alfineta politicamente o que precisa ser alfinetado. Para concluir, “Uma Família Feliz” entrega um trabalho digno, com a maestria criativa da condução narrativa, e que mesmo com esses problemas estruturais, ainda assim é um filme fora da curva e de excelência técnica.