Acasos como forma e construção
Por Fabricio Duque
Durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2019
A maestria do cinema francês está em dosar um neo-realismo com a poesia lúdica das micro-ações do cotidiano, humanizando idiossincrasias, embasando possibilidades e construindo assim uma unicidade autoral de um novo gênero, que abraça características do realizador François Truffaut com elementos palpáveis e orgânicos de nosso atual mundo moderno.
O ator galã Louis Garrel, que cada vez se embrenha mais na função de diretor (como neste longa-metragem em questão aqui), filho do cineasta Philippe Garrel, o pai da moderna estética narrativa que homenageia o classicismo da imagem, utiliza em seu mais recente filme a sensação da nostalgia, experimentada principalmente pela fotografia (de Irina Lubtchansky) importada e vanguardista da Nouvelle Vague, e pela técnica das elipses (o prólogo) e das aproximações da câmera pelo zoom, que imerge o espectador em uma atmosfera de tempo suspenso e de participação intimista.
Tudo acontece por um desenho espirituoso e espontâneo de simplificar a complexidade do tema universal do entendimento emocional das relações humanas. “Um Homem Fiel” (2018) é a essência do pensamento francês, que pluralmente questiona estágios e sentimentos, ora pela verborragia literária, ora pela passionalidade dos impulsos do querer, ora pela união dos dois anteriores, tudo conjugado em uma comédia realista de situações adversas e complementares.
“Um Homem Fiel” busca a liberdade plena do existir, mitigando todo e qualquer puritanismo, que por sua vez é um artifício crítico para desmascarar hipocrisias e defesas do próprio desejo (de aceitar relacionamentos modernos escondendo fragilidades e vulnerabilidades). Sim, o filme é a representação do discurso primitivo do prazer do ser a qualquer custo, quase um egoísmo infantilizado de ter o que se quer no momento que se almeja o objeto do amor personificado e fantasiado pelo platonismo e do equilíbrio da vida “começando a criar forma”.
A projeção do ter é mais importante do que o conseguir literal. É uma comédia romântica não convencional, que foge dos padrões hollywoodianos e que se desenvolve pela cumplicidade da sabotagem recíproca de suas personagens retroalimentadas pela ingenuidade da competição dos silêncios e das discussões narradas (esta que conduz o espectador por detalhes e “pistas” subjetivas) e ou de verdades confessadas e ou constrangedoras e ou desconcertantes.
“Um Homem Fiel” pauta-se nos reencontros arquitetados e orquestrados pelo acaso. São perspectivas observadas. Como se tudo que vivêssemos já estivesse escrito. Quanto mais vivemos a trama, mais percebermos uma semelhança com o cinema de outro François, o Ozon, especialmente do filme “Dentro de Casa”, pela aura noir de mistério das teorias conspiratórias de férteis imaginações (cuja resposta pode estar nos filmes assistidos pelas personagens), e com Christophe Honoré, de “Canções de Amor”, pela adjetivação das emoções e pela leveza despretensiosa de não esperar, tampouco subverter, o estágio intrínseco das reações, respeitando a preservação integral do comportamento ímpar de cada um.
Garrel também é o protagonista aqui, interpretando um “substituto amoroso”, uma bola de pingue-pongue, que luta para convencer os outros de suas qualidades contra um filho (um “diabinho” manipulador) que tem uma imagem errônea da mãe e que semeia e planta a dúvida, como o “chá envenenado”. E assim, a história muda sua perspectiva de perseguidores espreitados, impulsionados pela paixão e encantados com a sensação do desejo.
Apesar de pulular referências e atmosferas de outros clássicos filmes franceses, como Claude Chabrol e Jacques Demy, “Um Homem Fiel” mantém intacta sua estrutura autoral e inventiva, de psicologia reversa e coloquial, soando mais como um elemento cinéfilo de vivências que uma cópia homenagem. É uma obra-prima de controle absoluto da direção e de lidar com as incessantes reviravoltas de uma disputa inteligente (menos física) que quebra a moral e o politicamente correto de “mentes sexuais” e “loucuras urgentes”.
Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês 2019, o segundo longa-metragem de Louis Garrel, que que possui quarenta e três créditos no IMDB como ator, e que também roteirizou junto com Jean-Claude Carrière (e com a colaboração de Florence Seyvos), é mais uma investida na experimentação narrativa iniciada em “Dois Amigos”. Este corrobora o que o cinema francês tem de melhor quando opta por não ser mais um exemplo produto dos clichês americanos. É arte em palavras, emoções, pulsantes estímulos, ações, reações, sentimentos, desventuras, possibilidades e liberdades. Um filme que retrata a própria vida com a proteção ilusória da ficção projetada em um preciso timing de aprofundar e afastar a percepção do público.