Um Homem de Sorte
Romance de formação
Por João Lanari Bo
“Um homem de Sorte” é uma produção dinamarquesa de 2018 realizada por Bille August, baseada no romance “Lykke-Per”, escrito pelo vencedor do Prêmio Nobel de 1917, Henrik Pontoppidan, também originário do reino da Dinamarca. Foi publicado em partes entre 1898 e 1904, e festejado por sumidades como Thomas Mann, Georg Lukács e Ernst Bloch – que o consideraram uma “obra-prima cosmopolita de alcance histórico”, uma profunda “anatomia social, psicológica e metafísica da transição modernista”. O texto literário traduz aquilo que o termo alemão Bildungsroman define: romance de aprendizagem, ou de formação, cuja característica principal é apresentar a jornada da infância à maturidade do personagem principal, em meio às vicissitudes de crescimento espiritual, político, social, psicológico, físico e, sobretudo, moral. “Lykke-Per” refere-se ao personagem central do livro (e do filme), Peter Andreas Sidenius, Per para os próximos, seu sucesso e fracasso, ou ambos (a palavra dinamarquesa para “sorte”, Lykke, também significa “feliz”).
O título aparentemente alude ao conto de fadas dos Irmãos Grimm, “Hans im Glück”, traduzido no Brasil como “João sortudo”: um jovem recebe de seu mestre o objeto de troca por excelência – o padrão a partir do qual se avalia tudo o que se troca – a barra de ouro. João fica trocando um item após o outro por um de menor valor, e acaba de mãos vazias e aliviado. No romance (algo) autobiográfico de Pontoppidan, assim como no filme de Bille August, Per Sidenius (encarnado na tela por Esben Smed Jensen) vive na zona rural da Dinamarca, península da Jutlândia, na década de 1880 ou 1890, e descobre que foi aceito na faculdade de engenharia em Copenhague. Seu pai, ministro luterano severo e autoritário, indigna-se com a decisão e exige que seu filho “se afaste do caminho da perdição”. Per responde: Nunca! E sai de casa, rumo à formação e ao cosmopolitismo, chegando ao isolamento sombrio. Em uma de suas últimas falas, assevera: aqui, finalmente me tornei consciente de quem sou… na minha solidão ímpia… me sinto agora liberado.”
August e seu filho corroteirista, Anders August, fizeram um trabalho consciencioso de adaptação e condensação do livro de Pontoppidan. Inevitavelmente, foram obrigados a cortar personagens e subtramas, mas mantiveram a questão central do enredo a contento: é possível superar origens humildes, ou nascimento e caráter são um destino inevitável? O dom científico de Per – ele queria promover a drenagem de pântanos e a abertura de uma série de hidrovias na Jutlândia, com o objetivo de mudar a importância estratégica da Dinamarca na Europa – traz uma ambição desmedida, ousada, desafiadora. A competição com os países do norte europeu era (e é) feroz, naturalmente. Mas o intrépido estudante de engenharia consegue acesso a uma rica família burguesa de judeus liberais, apta a absorver ideias como as suas e apostar na sua materialização.
O acesso inclui um romance com a filha mais velha, a bela e intelectualizada Jakobe (Katrine Greis-Rosenthal). “Um homem de Sorte”, entretanto, é um personagem melancólico, apesar das excitações que atravessa: todos os planos e desejos são abandonados no momento do sucesso, nele habita o que Fredric Jameson chamou de “neutralidade cósmica”, um estranho sentimento, ou falta de sentimento, que caracteriza suas emoções. Falta de sentimento não significa aqui ausência de paixão, avalia Jameson – Per tem muitas e diversas paixões – trata-se de uma indiferença que aflora no ápice da ansiedade, uma espécie de fundamento permanente da existência. Um sentimento da modernidade, enfim, que afeta a transição mental e social de jovens ambiciosos no apagar das luzes do século 19, momento de perturbadoras mudanças científicas e tecnológicas.
A psicanálise, aliás, é uma dessas transformações que a ciência turbinou. Tal como Freud, que na mesma época refletia e conceituava, Jameson identifica no personagem Peter Sidenius um desejo de morte subjacente aos desejos conscientes – por baixo de todos os sucessos que deveriam trazer realização e pelo menos um momento passageiro de satisfação, persiste algum impulso imortal que nunca pode ser silenciado (exceto pela morte orgânica) e que, “em nós mais do que nós” e insaciável, torna sem significado tanto o sucesso quanto o fracasso. Henrik Pontoppidan, o autor que deu origem a “Um homem de Sorte”, também era filho de vigário luterano da Jutlândia, descendente de uma família de religiosos e escritores, e abandonou o curso de engenheiro em Copenhague. Seu perfil no site nobelprize.org é seco e irrefutável: ele ganhou o Nobel “por suas descrições autênticas da vida atual na Dinamarca”.