Um Gato Sonha com o Norte
Um recurso, de novo
Por Vitor Velloso
Durante o Festival Ecrã 2021
“Um gato sonha com o norte” de Diogo Oliveira é mais um recorte processual que figura no Ecrã. O filme encontra seus personagens em um espaço confinado e registra suas conversas, ensaios, histórias, cigarros, enfim, o dia-a-dia dos artistas. Como exercício é pouco criativo, já que não passa dos momentos que vão se alternando, ora com o som trocado, ora com a imagem transitando e o áudio permanecendo. A impressão que fica é que o registro não passa muito disso, ainda que algumas ideias não sejam ruins, as coisas são monótonas e repetitivas.
Quando o espectador tem dúvida da origem de seus personagens, da verdade por trás de suas falas e quem desempenha o que ali, as coisas funcionam no jogo da curiosidade. Na transa entre a ficção e o registro, alguns personagens vão se somando à multifacetação de uma criação que não é compreendida na totalidade. É o que faz “Um gato sonha com o norte” funcionar até um certo ponto, pois é a oposição ao didatismo que gera algum interesse. Da mesma forma que alguns experimentos são mais bobinhos, como essa inversão da representação através do deslocamento da imagem e do som. Muitos diálogos são tediosos e revelam algumas tendências de encenação dos artistas, que pouco acrescenta à obra em si, pelo contrário, é um esforço pela suposta estranheza que aquilo ali pode gerar para o documentário.
E as coisas ficam claramente mais francesas que latinas, a própria estrutura e a dinâmica da montagem revela uma inclinação maior para uma leitura genuinamente europeia. A leitura dos textos e as palavras finais serem introduzidas inicialmente em francês são apenas exemplos. Mas os planos do pessoal fumando fora de casa, ou a apresentação que projeta o mapa no rosto das pessoas fixadas mais à direita, dão ao processo a fatalidade de seus meios. Orfeu, o gato do título é mais uma marca, as obras anteriores e a tentativa de libertar seus personagens das amarras de um processo documental mais direto, também fazem parte de um imaginário de digressão da arte francesa. Está longe de ser o maior problema do filme, mas quando há pouca ressonância para o público brasileiro, o negócio fica meio estéril e inócuo. Assim, os setenta minutos duram uma eternidade e nada salta os olhos, nenhum dispositivo se destaca e as experimentações caem na mesmice.
As exposições individuais se tornam pequenos retratos, onde as coisas são apresentadas de acordo com a montagem que tenta algumas disrupções e fragmentações, provocando alguns bocejos, porém o recurso auxilia no não-abandono imediato da experiência, já que podemos ter o mínimo de conhecimento das trajetórias. Mas toda vez que “Um gato sonha com o norte” começa a funcionar, um dispositivo burocrático é inserido e tudo retorna ao tédio. Quando as coisas começam a soar mais performáticas e caóticas na direção proposta por Diogo Oliveira, somos lembrados de entraves internos e retomadas ensaísticas que parecem procurar tomos filosóficos no próprio processo. É uma espécie de tendência racional-naturalista que a França possui, em tentar creditar ao mundo um pensamento que a diretriz é mais “orgânica”. Não por acaso a unidade do cinema experimental francês tende à um conservadorismo primário. Um dos poucos que escapa desse imbróglio é o Grandrieux, já que trabalha no destaque da matéria e no contraste com a exposição de seus dispositivos, revelando o funcionamento pela própria prática.
O Festival Ecrã 2021 vai mostrando pouca versatilidade na escolha de algumas exibições, ou os experimentos não conseguiram sair do beco sem saída que se meteram há anos, décadas. De toda forma, é explícito que os franceses aparecem com uma frequência assombrosa nessas rodadas, ainda que sem grandes diversidades e “Um gato sonha com o norte” não sai muito do balaio comum desse tipo de projeto, apesar de ter algumas ideias interessantes, se perde com o passar do tempo.