Mostra Um Curta Por Dia 2025

Um Filme Para Beatrice

Filmografia comentada e novas disposições do feminismo

Por Pedro Sales

Durante o Festival É Tudo Verdade 2024

Um Filme Para Beatrice

Não tem como comentar sobre “Um Filme Para Beatrice”, longa de abertura do Festival É Tudo Verdade 2024, sem falar da obra anterior da diretora Helena Solberg, sobretudo “A Entrevista” (1966). “Eu não sei se eu era do Cinema Novo”, diz a diretora, “mas o cinema era novo para mim”. Essa frase de certa forma sintetiza a própria presença de Helena no cinema brasileiro. Apontada por muitos como a única mulher do movimento cinemanovista, é desse lugar de isolamento que a diretora analisa o ser mulher no Brasil. Neste sentido, o primeiro trabalho da cineasta já antecipava essa questão que perdura na filmografia. Ao ouvir mulheres de idades próximas e mesma classe social, Helena Solberg contrasta a opinião vigente sobre virgindade, pureza e casamento com a encenação fictícia do preparativo para um casamento. É, então, a construção de um discurso unificado, a voz em off, por exemplo, corrobora com esse caráter, uma vez que não centraliza quem fala, apenas o que é dito, formando um amplo comentário sobre a condição feminina no Brasil dos anos 60.

Este curta de quase 60 anos é também o ponto de partida para o novo trabalho da diretora. Quando a jornalista italiana Beatrice Andreose encontra um rolo de “A Entrevista” em ótimas condições, contata Solberg e lhe faz a seguinte pergunta: “Como vão as mulheres no Brasil?”. É a partir desse questionamento e provocação que a cineasta realiza um filme-resposta. Em vez de escrever um simples email, coisa quadrada, ela faz um documentário para atualizar as respostas do curta-metragem dos anos 60. Inicialmente, Helena responde sob um prisma muito pessoal e auto reflexivo. A análise das próprias obras, em uma espécie de filmografia comentada, é reveladora na medida em que a autora explica intencionalidades e o contexto de produção de cada uma delas. Acaba sendo, também, um convite à obra da cineasta – logo depois deste, engatei no curta de estreia e “Meio-Dia” (1970). Para além da afetuosidade que se depreende do contato entre obra-autor, que por si só já é interessante, torna-se evidente ao público que há uma questão que perpassa a obra de Solberg: o feminismo.

Em “Um Filme Para Beatrice”, Helena Solberg reconhece que sua visão do que é ser mulher e sobre os papéis de gênero se difere das discussões atuais. “Uma mulher branca, de mais de 80 anos, de classe média”, como ela mesma se define em tal momento, busca entender as novas disposições do feminismo. Portanto, em contraste com sua obra de estreia, na qual o discurso acaba sendo unificado, apontando em uma só direção, apesar de eventuais divergências, neste documentário explora-se um discurso heterogêneo. Rita Von Hunty, figura pública nas redes sociais, dá entrevista desmontada, como Guilherme, para contextualizar o perfil de drag. Heloísa Teixeira conversa com Helena como em um papo de amigas. Enquanto a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, explica sobre interseccionalidade no feminismo. No entanto, por mais que o filme tente construir essas diferentes visões para formar um todo: o feminismo atual, a montagem sofre em encadear essas ideias e fazê-las conversar com os trechos de obras de Solberg que são mostrados. Parece, então, que amplia-se a ideia do ser mulher a partir das novas disposições, de uma forma solta sem conseguir fechá-la adequadamente, sendo um tópico muito mais debatido do que o outro, provocando assimetria nos discursos.

Dessa forma, “Um Filme Para Beatrice” é mais uma investida de Helena Solberg para responder ao questionamento do ser mulher no Brasil – ou tornar-se mulher, em uma perspectiva beauvoiriana. Por mais que aqui a diretora amplie a visão para os novos feminismos que surgem e os conecte com sua filmografia bastante calcada na filosofia feminista, aqui carece do caráter provocador das outras obras. Ao ouvir representantes dessas vertentes, há uma construção quase acadêmica do feminismo, que se distancia bastante do trabalho de base observado nos trechos de “Simplesmente Jenny” (1977), por exemplo. Enquanto no curta supracitado meninas bolivianas são ouvidas e a partir delas a diretora propõe um discurso sobre feminismo baseado nas vivências e violências sofridas, aqui são ouvidas uma influencer, uma imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e uma ministra. É certamente um lugar mais confortável e, pode-se dizer, mais “embasado teoricamente” para discutir o feminismo brasileiro atual, mas ainda assim mais distante das mulheres comuns.

2 Nota do Crítico 5 1

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