Mostra Um Curta Por Dia 2025

Um Completo Desconhecido

O paradoxo de um artista soprando no vento

Por Fabricio Duque

Festival de Roterdã 2025

Um Completo Desconhecido

O paradoxo de um artista é uma questão recorrente, intermitente e universal. Quando se consegue a fama de sua própria arte, a liberdade incondicional do instante inicial da criação parece não mais encontrar espaço no novo lugar-momento, e assim se transforma em outra coisa, contraditória e diferente, que o aprisiona no mesmo formato, o impedindo de tentar novas vertentes, novos estilos e poder experimentar outras tangentes. É preciso “trocar” o low profile pela superexposição (e muita das vezes começar a pensar no que a audiência espera de sua arte), para assim agradar a esse público e sempre “percorrer a mesma estrada”. Isso acontece em qualquer área, sem exceção, mas no universo da música parece que há uma preocupação maior sobre essas questões. Visto que tudo vira um produto, uma marca e uma assinatura, que devem estar nos moldes da padronização para “não causar surpresas nos produtores”, estes os detentores dos direitos autorais das músicas. 

Sim, é bem complexo na verdade. E há ainda outra variante: a de esse músico famoso é obrigado a separar a própria vida da obra. É como se após criado, o artista precisasse ser um robô submisso às vontades dessa fama e do sucesso acarretado. E o mais recente filme de James Mangold, “Um Completo Desconhecido”, não poderia ser diferente na construção de sua narrativa sobre Bob Dylan, o ícone do folk que se rebelou contra rótulos, apegando-se na utopia da liberdade criativa em seu trabalho (e em manter intocada à “ferro e fogo” sua aura blasé low profile e não sucumbir a “Bobmania” – num que histérico bem The Beatles de ser). Aqui, seu realizador, norteamericano de Nova Iorque, quer imprimir uma mise-en-scène de nostalgia atemporal, só que como uma revisitação importada da época abordada e como uma viagem do passado aos tempos do agora, gerando assim a comparação entre gerações e seus efeitos no mundo de hoje pelo o de antes. 

Assim, essa condução cênica, despretensiosa, de tempo suspenso da realidade,  busca a experiência sensorial pela metafísica real dessa jornada épica e altamente expressiva, ainda que necessariamente mais romantizada, muito pelas interpretações de seus atores, especialmente a do queridinho Timothée Chalamet, que aqui internaliza tanto sua personagem, que se tornar Bob Dylan é natural, transmitindo um coloquialismo orgânico, contido, crível e que passa verdade real quando o assistimos em cena. Como disse, “Um Completo Desconhecido” quer ambientar a época dos anos sessenta aos oitenta pelo tom intimista, pelas transformações de dentro da personagem principal, que pela solidão patológica e melancolia genuína, sente que tudo o que está fora é incompatível e não consegue o acompanhar, tampouco suprir seus vazios. Escrever as músicas e canta-las é sua forma de viver, de questionar a guerra, a futilidade-posse das relações humanas e dos “abutres” que o veem como um “pote de ouro”. Será que temos então o direito de julgar suas escolhas, suas lutas, sua arrogância e sua defensiva silenciosa em lidar com coisas e pessoas? 

“Um Completo Desconhecido” é também sobre o processo à rebeldia, tanto que o título do filme é um trecho da música “Like a Rolling Stone”, quando o artista “botou a pá para quebrar” ao transar rock ao folk em um festival radical (folclórico, de “conhecimento-comportamento do povo”), que se construía por mudanças “em doses homeopáticas”. No início do filme, nossa percepção vai ao encontro de um mundo beatnik existindo no começo dos anos sessenta, com o lema “essa terra é minha terra”, perdido numa submissa resiliência sem esperança. Os ídolos-inspiração eram mais fáceis de encontrar: estavam convalescentes  (e em “jornadas quase no fim”) em hospitais. Mas há os do “futuro”, “mais fortes que a poeira”. Outro ponto observado em “Um Completo Desconhecido” é seu tom narrativo mais humanamente articulado, empático, sutil, perspicaz e espirituoso, sem procurar alívios cômicos e gatilhos comuns mais padronizados ao gênero de cinebiografia, livremente baseado. Seus diálogos são sóbrios, hospitaleiros, maduros e dosam com precisão toda a utilização dos elementos mais sensíveis, mais sentimentais, mais comoventes e mais emocionados. Talvez porque a fotografia complemente tudo isso, apresentando-se saturada à uma película antiga

O longa-metragem, entre Little Ritchie, Johnny Cash, Joan Baez, e muitos outros, é um documento musical (sobre o básico do folk – que representa uma comunidade – e seus voos ensaiados e seus “lamentos sussurrados”) com uma responsabilidade enorme para Timothée, que aceita o desafio em cantar as músicas de Bob Dylan (um “freak” com atitude e com visão para um novo caminho”), mas com uma forma tão irretocável, própria, rasgada e particular que embarcamos nesta versão modificada, e em transição, entre a “inocência e a rebeldia”. É como se Bob estivesse na tela, em imagem e voz. Sim, “Um Completo Desconhecido” é sinestésico. Arrepia. Sentimos a energia, a força, os silêncios e as iminentes ações do filme (até mesmo o embate entre Picasso e Bette Davis). “Pessoas criam passados”, diz com um que de minimalismo emocional. O filme aqui quer ir além de apenas mostrar o cantor-compositor homenageado, e sim traduzir seus porquês, suas parcerias musicais, seus amores casuais, seus sexos fisiológicos, seus pragmatismos, suas causas e suas contemplações. Que é cantar sobre a vida acontecendo. Sobre o que está em seu redor. Que é se incomodar com o que o perturba e o que o frusta. Inclusive a sua “famosidade” e ser invisível a esse sucesso todo. E de não querer “ninguém como dono dele”. 

Não há nada de brega, de clichê e de apelativo em “Um Completo Desconhecido”. James Mangold (de “Logan”, “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”, “Ford vs Ferrari”, “Garota Interrompida”) sabe muito bem dosar a hora de por emoção e a hora de tirar. É um filme sobre um artista que é “o ato final”. Que foge do comum. Que tem tanta autenticidade que encanta, domina e depois afasta a todos. É um filme que faz terapia com um Bob Dylan ficcional, baseado no livro “Dylan Goes Electric!”, de Elijah Wald, que escreveu em 2015, e assim tenta definir seu cérebro, suas motivações e suas intolerâncias com as pessoas que não consegue se conectar. De iniciante gênio a um jeito selvagem desencadeado pela fama “apropriada”. Pois é, o paradoxo de um artista já começa no seu próprio querer de ser um artista. 

5 Nota do Crítico 5 1

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