Ulisses
Ladrão de angústias
Por Vitor Velloso
Cristiano Burlan é um cineasta cuja filmografia parece funcionar a partir de espasmos, não só pela ampla variação de estilos e gêneros, mas pela lógica interna de cada obra responder única e exclusivamente a uma ambição particular, que pode até transbordar e atingir alguma outra proposta, ainda que seu fim esteja marcado e definido. É como se Burlan, diferentemente de outros cineastas que passivamente assistem à “morte” de suas obras, decidisse pôr fim nelas. Porém, sem o chilique de um Vincent Gallo, aliás, São Paulo pode até te enlouquecer, mas não te faz europeu.
Talvez essa seja parte da chave para entender “Ulisses”, uma não-adaptação da Odisseia, um livre latrocínio da obra de Homero. Se, por um lado, utiliza a estrutura para guiar o nosso Ulisses (Rodrigo Sanches), por outro, amplia a perspectiva para as múltiplas Penelopes (Ana Carolina Marinho, Lorena Lobato, Luana Frez, Rebecca Leão), abrindo mão da história grega e fundando duas linhas de frente: 1) a São Paulo labiríntica, que dificulta o retorno de nosso personagem; 2) a base trágica como única referência clara, mas que vai se diluindo a cada nova etapa, pela fragmentação e pela adaptação dos elementos.
O ciclope do início do filme já explicita ao espectador que a base é o mundo concreto; as deidades que interferem na narrativa devem ser reconsideradas, e São Paulo é o novo personagem dessa traição literária.
É interessante como o novo filme de Burlan não reverencia em nada o clássico ocidental; apenas compreende que o que compõe a tragédia são as questões humanas que nos acompanham até os dias atuais — mas até essas questões são mutáveis, a depender do contexto, por mais que o Norte negue. Daí a imagem de Bernardet, as múltiplas adaptações de texto dentro da supostamente “intocável” Odisseia. “Ulisses” é uma iconoclastia de uma obra sem imagens, que não apenas assume uma experimentação de formas e efeitos, como também mostra parte do processo de montagem do projeto, apontando o dedo para o espectador e dizendo: “[…] tem que se esforçar para ver o filme, não pode ser uma coisa passiva”. Evidentemente, alguns espectadores ficarão aborrecidos com o experimento, ainda mais se tiverem na mais alta estima, ou expectativa de adaptação, a obra de Homero. Burlan praticamente escreve nos primeiros minutos de projeção: Vós que entrais, abandonai toda a esperança. Aliás, não existem direitos morais, quiçá patrimoniais para obras gregas (e afins). E se tivesse, Burlan estaria pouco preocupado.
É nessa convulsão urbana que “Ulisses” se molda e se perde, com Penelope dizendo: “Eu ia me decompondo a cada pôr do sol”, sem a intenção de esclarecer para o espectador, afinal… não pode ser uma coisa passiva.
Apesar de ser reticente com as inúmeras menções à pós-modernidade que têm sido feitas ultimamente, pois a maioria é feita de forma leviana ou em um recorte descontextualizado, aqui faz sentido lembrar essa fragmentação e essa nova “morte do autor”. Afinal, essa adaptação possui outras adaptações, que somam adaptações textuais para formar um filme que contém interrupções para dialogar diretamente com o espectador sobre o próprio processo do longa. É tudo tão histriônico e labiríntico que, em determinado momento, o espectador pode ser sugado para o corredor infinito do metrô paulistano, com pessoas de máscara ao redor de Ulisses, e aí sim acordar do transe, seja por rememorar esse pesadelo recente, seja pela imagem urbana familiar.
Assim como em 1048 Luas (2017), de Charlotte Serrand, a odisseia em si é um assunto tão esgotado que o ato de se debruçar sobre ela com a mesma verve ou ímpeto se torna um exercício absurdo. Não para o Sr. Christopher Nolan, que já está encerrando seu novo projeto megalomaníaco. Intencionalmente ou não, Burlan dispara sequencialmente em duas perspectivas que Hollywood abraçou recentemente: esta já mencionada e a de Nosferatu, a adaptação da adaptação… que Eggers assinou recentemente, tentando se fidelizar no ato fálico e reforçando que o cinema hollywoodiano vai de mal a pior.
Burlan nos convida para uma experiência cinematográfica que funciona a partir de um transe urbano insano, como um ladrão por acaso, que rouba por notar o poder que tem diante do medo do outro. Só que aqui ninguém tem propriedade, procura-se o que roubar.


