Tudo sobre Chris Marker e a homenagem recebida no É Tudo Verdade 2021
Não seria maravilhoso se este século terminar como começou, com uma vanguarda russa?
Por João Lanari Bo
A 26ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários e o Itaú Cultural realizaram, nos dias 7 e 8 de abril, a 18ª Conferência Internacional do Documentário. Assista aos vídeos ao longo desta matéria!
Eterno desconfiado da ficção, e, mais ainda, do documentário, Chris Marker saiu-se com uma invenção, mais do que uma invenção de estilo ou de linguagem: uma invenção transcendental. Algo que vai além das experiências místicas ou sobrenaturais e, portanto, além do mundo material; uma experiência enquanto ainda formulada na mente. Uma espécie de gênero cinematográfico, absolutamente pessoal, parte diário, parte documentário, parte imaginário: o que importa é usar os temas como faíscas para reflexões políticas, culturais e/ou filosóficas. As vozes que narram seus filmes assemelham-se a alter-egos mais ou menos ocultos, da mesma forma como ele, Chris Marker, cultivou uma cuidadosa omissão da sua própria imagem ao longos de todos esses anos de (in)visibilidade cinematográfica.
Tudo é fetiche nessa história, esse artifício no qual Deleuze via “um signo da imagem-pulsão”, aquele objeto parcial que sobra e habita em algum lugar na memória – pode ser uma roupa, um dedo, uma boca, um sapato, um pedaço de carne. A breve aparição de Marker no filme de Wim Wenders, Tokyo-ga – filmada no boteco “La Jetée”, no Golden Gai de Tóquio – é desveladora: o local é um cubículo, cabem apenas para 7 ou 8 fregueses; Chris olha de soslaio a câmera, sua imagem imprime em meia dúzia de fotogramas. Suficiente, como no seu próprio (e genial) filme “La Jetée”, para impulsionar uma faísca de movimento, de emoção, de pensamento, enfim. Como disse Philippe Dubois, “La Jetée” é feito de “cinematogramas”: é o contrário do “fotograma; é um instante que dura; é uma foto feito filme; é uma imagem feito pensamento; é uma imagem da consciência feito percepção”.
“É, se você quiser, o único filme de ficção (e até mesmo de ficção científica) na obra de Marker”, conclui Dubois. Como classificar o inclassificável Marker? No IMDb constam 67 entradas em seu nome como diretor, 54 de roteirista, 22 de fotografia…e, entre tantos outros, 1 entrada como ator (voz, e não creditado). Agnès Varda visitou-o no seu atelier, em 2011, um registro precioso – Marker submerso na vertigem digital.
Chris Marker está na edição deste ano de “É tudo verdade”. Imperdível. Todas as atividades da Conferência, gratuitas e já gravadas, aconteceram no site do Itaú Cultural, O simpósio homenageou neste ano o centenário de nascimento do cineasta, escritor e fotógrafo francês Chris Marker (1921-2012), diretor de clássicos como “Carta da Sibéria” (Lettre de Siberia, 1958), “A Pista” (La Jetée, 1962), “Maio Feliz” (Le Joli Mai, 1962), e “Sem Sol” (Sans Soleil, 1983). “De pioneiros cine-ensaios a brincadeiras com avatares, Marker durante mais de sete décadas experimentou com as fronteiras do audiovisual”, afirma Amir Labaki, diretor-fundador do É Tudo Verdade e curador da Conferência. “Para melhor compreender o impacto de sua obra, nada melhor do que ouvir especialistas”.
Na palestra de abertura, o crítico francês Jean-Michel Frodon abordou a relação entre o cinema de Marker e a palavra. A segunda mesa apresentou uma entrevista do documentarista brasileiro Sílvio Tendler para a curadora franco-brasileira Anna Glogowski sobre o convívio de Tendler com Marker nos anos 1970 em Paris. Os laços entre a América Latina e Marker foram discutidos pela especialista brasileira Carolina Amaral no terceiro encontro. Por fim, a mesa de encerramento recebeu um dos maiores teóricos do cinema documentário, o americano Bill Nichols, para uma original análise de dois filmes formalmente muito distintos (A Pista e Maio Feliz) realizados num ano crucial para a obra de Marker: 1962.