Tudo Que Imaginamos Como Luz
Em busca do silêncio indiano
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival de Cannes 2024
Exibido aqui no Festival de Cannes, como seleção oficial da mostra competitiva a Palma de Ouro, “Tudo Que Imaginamos Como Luz” busca um novo caminho narrativo, distanciando-se do gênero de Bollywood cantado e da ação envolvente de “Quem quer ser um Milionário”, de Danny Boyle. Neste segundo longa-metragem da realizadora indiana Payal Kapadia (de “Uma Noite Sem Saber Nada”), nascida em Mumbai, Maharashtra, o que se deseja mesmo é o silêncio, a simplicidade ingênua do que está dentro (a poesia, o flerte, o desejo universal, as tradições e os impedimentos existenciais), mais genuinamente internalizada, entre a espera que precede os desdobramentos situacionais das ações orgânicas do cotidiano ao redor. Tudo para que seja criada uma atmosfera de metafísica observacional (de percepção etérea) pela narração mais naturalmente coloquial da personagem principal e pela fotografia saturada a um granulado que remete uma imagem atemporal do que se vê (como se suspendesse a realidade). Especialmente no início de “Tudo Que Imaginamos Como Luz”, cujo preâmbulo traduz o sensorial de uma cidade em movimentos, em seus detalhes, comportamentos típicos, atravessamentos por vidros e trens e fragmentos de vida acontecendo. “A cidade rouba o tempo de você, é preciso se acostumar com a impermanência”, diz-se além do tédio do trabalho, do calor, o piano versão jazzista e um universo de enfermeiras, médicas e pacientes.
“Tudo Que Imaginamos Como Luz” é assim: uma obra sobre a automação invisível do real e não perceptiva do dia-a-dia. É sobre Mumbai e seu redor. Sobre trabalhadores, sobre o caos do trânsito e da superpopulação. Mas nada disso é uma crítica (anda que os pacientes de um hospital exponham essas questões de pessoalidade mais social) e sim uma constatação narrada resiliente-resignada de uma moradora ficcional que olha para tudo aquilo com costume, identificação, conforto, com sentimento humanizado para ajudar e expressões sutis. Neste momento, é quase impossível não referenciar os quadros instantes do realizador Jia Jhanke com Wong Kar-wai, porque essas personagens encontram o propósito não em sonhos projetados de uma “cidade de ilusões”, mas sim na concretude do que se tem na mão: uma casamento muçulmano, uma máquina importada de fazer arroz, a camisa número dez de futebol do Brasil em algum passante, uma procissão-desfile de algum deus(deusa) levando multidões e até mesmo o apego à falta de um marido que foi para a Alemanha e não voltou mais.
Mas “Tudo Que Imaginamos Como Luz” sabe também que tudo o que mostra é ficção (com estrutura de novela) deste real orgânico que participa da vida dessas personagens em busca de mais, nunca se contentando com a angústia de seus estágios atuais. De lutar por quebrar paradigmas e argumentos. De aceitar (e viver clandestinamente) inclusive a proibição do amor. O filme quer fabular crônicas intimistas dessas mulheres pressionadas pelo redor que as “sufoca”. Ainda que esse social seja problematizado por falhas de sistema, faltas governamentais e conservadorismo de uma população que tem medo do novo (por não “saber” se os deuses e deusas irão gostar – corroborando assim questões de classe e gênero), o foco aqui é única e simplesmente essas vidas pessoais. Ao sair da sessão aqui em Cannes, o “burburinho” era que a narrativa do filme era sobre o “nada”. Sim, só que esse comentário depreciativo pode ajudar a traduzir o todo, porque o nada, a espera, entre uma ação e outra, é o tempo preciso que se pode traduzir o verdadeiro querer de um ser humano. É o tempo que não se racionaliza. É o tempo mitigado de lista de opções a fazer. É o tempo em que se deve estar. Isso cria a nostalgia desse tempo, gasto num espaço em que o nada aparece mais que alguma outra coisa. Sim, é a exata metafísica do existir, que nos possui de invisibilidades não perceptíveis. Quando “Tudo Que Imaginamos Como Luz” adentra nessa atemporalidade da alma, nessa sutileza de expressões, nesse desejo instintivo, nessa empatia ultra humanizada, tudo faz sentido e sugestiona a poesia dos micro instantes vividos. O filme é sobre o mais básico minimalismo das pequenas coisas. É sobre o que a vida é: um grande tédio pragmático “sem graça” (e que nós para “sair do marasmo” criamos reviravoltas e complexidades, numa teia que nos aprisiona em nossas próprias decisões confusas. Sim, cada ação gera um plot, que gera a necessidade da resolução, que gera as consequências. Um grande ciclo vicioso que retroalimenta tudo. “Tudo Que Imaginamos Como Luz” quer abordar esse “tempo morto” para que o espectador tire suas conclusões da maneira mais livre do que o simbolismo da luz imaginada e imaginária significa.