Tudo O Que Você Podia Ser
Daquilo do que somos feitos para o que podemos ser
Por Paula Hong
Mostra de Cinema de Gostoso 2023
Num país onde, só no ano de 2023, houve 155 mortes registradas de pessoas trans, com o aumento de 10,7% de assassinatos em relação a 2022, o diretor mineiro Ricardo Alves Jr. (“Elon Não Acredita na Morte” (2016), “Vaga Carne” (2019) e “Quem Tem Medo?” (2022)) escreve, com “Tudo O Que Você Podia Ser”, uma carta aberta em 24 quadros por segundo. Esse título que por si só abarca uma gama extensa de possibilidades, desde vislumbres existenciais até inspirações lúdicas que se encontram na zona cinzenta entre o positivo e o negativo, exprime o acalento de vidas sustentadas pelos afetos que escolhemos, mantendo-nos aqui.
Ricardo Alves Jr. entende que para deixar que seus personagens vivam, não sublinha constantemente suas identidades através de recorrentes violências. Ao contrário: opta, muito felizmente, por deixar correr diante de nossos olhos a pluralidade de nuances que o grupo de amigos Aisha, Bramma, Igui e Will contém, individual e coletivamente. As quatro pessoas dividem o protagonismo do filme com o diretor sabendo dosar muito bem o tempo que cada um merece e necessita para criar algum tipo de vínculo com quem assiste. Cada uma delas trilha caminhos singulares que se cruzam num vínculo afetuoso. Assim, o longa-metragem se mantém sólido num território afeito pelas dificuldades e hostilidades da realidade brasileira mas que, com a lente da câmera, direciona um outro olhar sobre essas vidas ao captar e registrar momentos do cotidiano resistente às imposições alastrantes sobre suas vidas.
Por isso, é com certa desconfiança com que assistimos o desenrolar de vidas desacompanhadas de uma violência extrema e caracteristicamente servidas de recurso narrativo em muitas obras audiovisuais. A hesitação é somente temporária, e com calma o diretor gradualmente nos ajuda a adentrar no filme na confiança das primeiras cenas do filme: Aisha dando início às despedidas antes de se mudar para São Paulo por motivos que não sejam de rejeição ou por estar fugindo de casa; Bramma lida com o diagnóstico de soropositivo sem precisar de lidar com os horrores estereotipados que vêm com a notícia (como comumente conhecemos pelos resquícios da imagem construída em volta do tema), pois há apoio de seus amigos; Igui comemora a aprovação no doutorado e a possibilidades de fazer o curso fora do Brasil, em Berlin; e Wila, que lida com ter de achar outra pessoa para dividir o aluguel já que Aisha parte, elaborando meios de cobrir as contas.
Ao acompanharmos os processos de vivências dessas pessoas, Ricardo Alves Jr. consegue, com “Tudo O Que Você Podia Ser”, centralizá-las a partir de uma ordem não da reinvenção e reimaginação, mas da própria autonomia para que pessoas como Aisha, Bramma, Igui e Wila reescrevam-se, por intermédio do cinema, no imaginário sedimentado por hostilidades e violências resistidas por meios de sobrevivência que acompanham sofrimento incessante. No filme, não há espaço para reforçar tal imaginário. Pelo contrário, os 84 minutos de duração são levados com certa leveza característica de cada uma das personagens. Tudo é provido de uma singeleza capaz de fazer com que (como deve ser feito) política e arte andem juntas, assim como o grupo de amigos que se reúnem para confortar uns aos outros, confraternizar e celebrar a legitimidade de suas existências.
Ao trazer aspectos biográficos de cada um, o documentário com arestas de ficção abre margem para um certo tipo de neorrealismo da contemporaneidade cinematográfica brasileira, sobretudo no que tange aos filmes LGBTQIA+. Eles se inscrevem por cima dos receios de levarem esses corpos para ocupar as ruas, de viver a cidade e, por extensão, suas vidas. Embora haja sempre medo, como se já sabemos o que esperar, é com grande alívio que majoritariamente, “Tudo O Que Você Podia Ser” se coloca como uma alternativa consciente àqueles que colocam-se contra às ações comunitárias de cura e renovação, pois são elas que sustentam a retroalimentação e manutenção de relações nas quais o cinema deveria se inspirar — este filme sendo um claro exemplo advindo dessa inspiração.
Sem floreios e rodeios estéticos, “Tudo O Que Você Podia Ser” aposta na liberdade de colocar personagens em cena ao invés de jogar contra eles, fazendo-os passar por provas de resistências, como se a vida em si já não fosse a maior de todas. O filme é uma carta aberta a quem procura por exemplos de sucesso e realização, de desentraves cotidianos e de interações que passam por percalços. Alia-se política e arte como participantes de narrativas que compõem celebrações que observamos — às vezes de perto, às vezes atrás da porta, de dia, de noite, com chuva seguida de sol, até o amanhecer de um novo dia.